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25 de Abril: Entre Celebrar e Viver

A celebração dos 25 anos do 25 de Abril pretendeu ser, de alguma forma, uma refundação. Dos discursos de vários tons, em várias tribunas, ou das múltiplas comemorações, um pouco por toda a parte, de que ia havendo eco nos órgãos de comunicação, ou dos programas evocativos da rádio ou da TV, uma nota comum parecia dominante: o 25 de Abril está vivo.
Claro que a expressão numérica da efeméride (0s 25 anos do 25A) pareceu exercer alguma efeito mágico. Mas essa circunstância não explicará tudo. Explicará, talvez, melhor essa pretensão à refundação o facto de a conjuntura política e social ser sensível à necessidade de reeditar a utopia. Se o valor central do 25 de Abril, enquanto vivência histórica, foi o da convivialidade, o reencontro em comum da liberdade, pela qual os portugueses puderam assumir e gozar, finalmente, de um estatuto comum, transfigurado em igualdade meteórica sem contradições, nada mais resistente ao esquecimento do que esse momento fundador em que os portugueses se "levantaram do chão"...A posição erecta, (o homo erectus) que a ciência já tinha atribuído, há uns bons milhares de anos, à condição abstracta da espécie humana, incluía, agora, também todos os portugueses.
A crença colectiva num mundo novo (e crer é poder, porque fundamenta o querer, ao contrário do que habitualmente se diz) "venceu" as contradições imediatas, ultrapassando o Estado pelo ímpeto da acção. Se alguma coisa caracteriza bem o 25 de Abril, para lá de todas as lucubrações políticas, é esta crença num mundo sem contradições que brota directamente dos desejos ou dos afectos mais profundos, ligados a necessidades básicas, nunca antes satisfeitas: Paz, Pão, Saúde, Habitação, Educação...Sem consciência das contradições, porque a urgência dos problemas não se compadece com as mediações dialécticas. De nada, pois, valia o aviso de que "a impaciência é fascista".
Ter em conta o aviso é recusar a utopia. Ser paciente é sujeitar-se a um tempo e a um lugar, submeter os desejos à ordem da realidade contraditória, ou à razão dialéctica. Separar o desejo do agir. Superar o desejo de satisfação duma necessidade imediata por uma necessidade superior, politicamente mediada. Sublimação das contradições. Ora, isso supõe a aceitação duma ordem socio-política, mediada pelo Estado, quando a ordem emergente do 25 de Abril era uma ordem bio-socialmente incarnada, libertadora de todas as energias, que neutralizou o contraditório, como condição de afirmação imediata.
Diz alguém que "o acto de neutralização está no coração da utopia...porque o neutro é, talvez, o único meio de fazer agir a poeticidade do surgimento" A "poiesis", o fazer imaginando ou o fazer como quem ensaia, supõe começar de tudo de novo, sem outro guia que a urgência da realização dos desejos como expressão das necessidades. Necessidade e liberdade coincidem. A poesia na rua é o assalto da imaginação ao futuro, fundando o presente.
25 anos depois, quando o Estado se reconhece incapaz de gerir as contradições cuja resolução reclamou para si, é o apelo à participação que aparece como dominante neste 25 de Abril. Só que, agora, falta-lhe o essencial: o lugar do imaginário social que alimentava a participação: paz, pão, saúde, habitação, educação, como frutos da liberdade. Cindiu-se a liberdade da necessidade que a justificava. A necessidade passou a ser um assunto da administração e não da participação social. Ficou só a liberdade. Com isso, não só aumentaram as contradições, como, sobretudo, aumentaram as distâncias entre o individual e o social. Como colmatar o fosso? Como fazer nossas as necessidades alheias para que a mobilização social tenha lugar? Bastará o perigo da exclusão social? A utopia, por definição, nunca é defensiva. É preciso passar para o outro lado. E esta é a questão.

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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