Página  >  Edições  >  N.º 80  >  Flexibilizações

Flexibilizações

Este texto "repentista" (como costuma dizer o Dr. Gabriel Alves) funciona como válvula de escape de uma dupla perturbação. A primeira foi-me induzida num recente debate sobre o projecto de "flexibilização curricular". A segunda, pelo choque sofrido quando lia recente edição do jornal "O Público".
Quedar-me-ei pelo comentário ao debate, para não tornar o texto demasiado extenso e deixarei para a próxima crónica uma resposta ao senhor José Mattoso.

Mea culpa

No decurso do citado debate, expus algumas dúvidas e preocupações, nomeadamente, sobre a necessidade de aprofundar o conceito de "flexibilização curricular". Reconheço não o ter feito da melhor forma. Aqui estou, qual penitente, a redimir-me do pecado... ou, porventura, a multiplicá-lo, ainda que fraternalmente.
Felicito os colegas que fizeram a apresentação das experiências. Admiro a coragem de quem expõe publicamente aquilo que faz e em que acredita. Sei o quanto custa ser "protagonista de projectos de mudança" e, para além e apesar do conteúdo deste texto, manifesto a minha total solidariedade e disponibilidade para colaborar, acaso os meus préstimos sirvam para algo.
Creio que esses professores serão capazes de entender a crítica como uma ajuda para desocultar outras perspectivas. Decidi-me, pois, por retomar o assunto porque os julgo merecedores deste acréscimo de comentário, ainda que tivesse hesitado em rabiscar estas linhas que correm o risco de serem mal interpretadas. A sua única intenção será a de procurar evitar que a generosidade dos colegas que participam do projecto se converta, mais uma vez, em desilusão e em mais uma oportunidade perdida para a escola. E, se me permitem a imodéstia, terá o mérito de expor por escrito algumas críticas que fui ouvindo aqui e ali e que, por serem demasiado rasteiras, não chegam até àqueles que delas mais beneficiariam.
Que se há-de fazer, se eu tenho este péssimo hábito de escrever o que outros vão dizendo em sacristia?

Somas e subtracções

Causou-me grande espanto e apreensão ver uma proposta de "flexibilização" reduzida a um singelo jogo de somas e subtracções de tempos lectivos. Ao cabo da segunda ou da terceira comunicação, apercebi-me de que a ênfase na "organização" se referia, estritamente à fusão de tempos de cinquenta minutos num tempo só, ou a outras do mesmo género. Não será a "flexibilização" muito mais do que simples alterações na gestão de tempos, dos espaços, ou no elenco de conteúdos?
Receio ser forçado a concluir que se insiste nos mitos do "aluno médio" ou da "turma homogénea". Senão, a que aluno, em particular se destinam os cinquenta, os noventa, ou mais minutos? A qual dos alunos (único, irrepetível, dotado de ritmo próprio, de determinado estilo de inteligência, de interesses e potencialidades específicas, etc, etc, etc!) e em que área ou disciplina? A que aluno concreto se dirige a flexibilização dos tempos?
Poderão argumentar que é apenas um primeiro passo, ou que ainda é cedo para extrair conclusões. De acordo! Mas resta saber se o tal "passo" é dado para a frente e em que direcção. Não nos esqueçamos de que foi a racionalidade técnica que conduziu à cristalização outras potenciais medidas inovadoras e transformou anteriores projectos do M. E. em caricaturas. Que nos fique como aviso.
O voluntarismo das escolas deve ser realçado. Mas o entusiasmo, por si só, não é suficiente. Um projecto deste tipo pressupõe auto-iniciativa que não se pode restringir à adesão a propostas ministeriais. As propostas, por mais meritórias que sejam (e creio ser o caso desta) terão de ser reinterpretadas, permanentemente reflectidas, avaliadas. Que me perdoem os colegas participantes no projecto, mas, talvez por distracção ou dificuldade de entendimento, as diferentes apresentações parecerem-me réplicas umas das outras. Não lhes descobri a identidade.
Foi esse hábito de mera interpretação técnica de directrizes, em detrimento da iniciativa das escolas, a mesma que condenou ao esquecimento muitas e úteis iniciativas, foi essa adesão linear a matrizes importadas que transformou os recentes regulamento internos em clones sem nexo. A autonomia é também condição de flexibilização curricular, para que os professores ajam mais como produtores que como consumidoras de currículo. Refiro-me à autonomia pedagógica, mais especificamente, pois, sem esta, as outras dimensões farão pouco sentido.

"Mais Educação Física, menos EVT"

No decurso do debate, alguém perguntou porque se tinha reduzido tempos em EVT e aumentado à Educação Física. Ninguém se dignou responder. E haveria resposta?
A reflexão esteve sempre deslocada. A tónica não deveria ser posta na extensão dos programas, mas no modo como se gere um currículo. A "insuficiência das aprendizagens" deverá ser atribuída mais às opções metodológicas que à dimensão de um programa. É importante o debate em torno dos programas, mas, tão importante como a definição de uma matriz de aprendizagens, é o modo como essas aprendizagens são desenvolvidas.
A mentalidade curricular tarda em ocupar o espaço da especialização disciplinar no 2º ciclo das "áreas disciplinares" virtuais. Se a compartimentação disciplinar contraria a emergência de verdadeiros projectos educativos, também a neurótica preocupação de dar o programa faz prevalecer a lógica do ensino em detrimento da lógica da aprendizagem e produz uma "caricatura" de flexibilização curricular quando a restringe a um mero jogo de somas a subtracções de tempos lectivos, de recolocação ou supressão de conteúdos, do maior ou menor peso desta ou daquela disciplina.
Por outro lado, não vi aproveitar-se a oportunidade criada para resolver o paradoxo que consiste em lamentar o escasso tempo disponível para "dar o programa" enquanto se desperdiça uma grande fatia desse tempo em testes, nos exames e no adestramento dos alunos em provas-modelo. Por que não se faz uma utilização útil desse tempo na prática de uma avaliação formativa (que ainda não logrou sair do papel da lei) que liberte o tempo necessário para... dar o programa?
Será ainda pertinente que nos interroguemos (a tempo!) sobre a possibilidade de o "estudo acompanhado", a "direcção de turma" e a "área de projecto" se poderem constituir em alternativas de desresponsabilização curricular. Poderemos deixar cair a exigência da diversificação dos processos de ensino e aprendizagem? Poderemos aceitar, olimpicamente, o confinar da formação pessoal e social dos alunos e da sua educação para a cidadania a cinquenta minutos semanais? Poderemos encarar como "fatalismo" o anunciado fracasso da área-escola?
Vamos mudar para, no essencial, tudo ficar como está, quando é toda a cultura de escola que urge mudar, quando é a cultura pessoal e profissional dos professores que é preciso re-elaborar?
Será preciso saber se estaremos a lançar andaimes onde assente um novo figurino de práticas de desenvolvimento curricular, ou se estaremos apenas a pôr remendos, a insistir em velhos vícios e rotinas.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo