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O grilo do Pinóquio

Alguém escreveu num jornal que nem sempre os melhores professores são os mais bem formados academicamente. Mas, provavelmente por excesso de zelo, o autor da prosa borrou a escrita. Julgou necessário reforçar a ideia e recorreu à depreciação fácil do trabalho realizado pelos professores do 1º ciclo. Escreveu, claramente escrito, "se, por absurdo, um doutorado quisesse leccionar no 1º ciclo (...)", como introdução a um naco de prosa que me eximo de transcrever dado reflectir traços de uma cultura profissional eivada de preconceitos e complexos de superioridade que eu julgava (há muito tempo!) erradicados.
Já em 1972, a UNESCO.html">UNESCO recomendava que se tomassem medidas para abolir "distinções hierárquicas, mantidas sem razão válida, entre as categorias de professores". Mas, mais de um quarto de século depois, ainda se assiste a manifestações de um elitismo descabido. Veja-se, a propósito, o conteúdo de algumas intervenções do chamado "sindicato dos licenciados", que repetidamente se esquece de que, para se ser professor, não basta o ser licenciado, nem mesmo o ser "doutor".
Um dos maiores óbices à ideia de uma carreira única decorre do conflito de interesses entre diferentes grupos, sectores e níveis de docência. Com o tempo, foram-se instalando vícios e mordomias, dividindo-se em várias uma carreira que deveria ser única. Como escrevia o citado articulista, "talvez os problemas do ensino comecem por aqui". Com o advento da massificação do ensino, as escolas viram-se invadidas por bacharéis e licenciados, advogados e engenheiros que, não tendo conseguido trabalho noutro lugar, conseguiram emprego a "dar aulas". Em nome do "direito ao trabalho" por lá ficaram.
Com o decorrer do tempo de serviço, uns tornaram-se professores enquanto outros desenvolveram uma cultura de funcionário público com a etiqueta de docência. A dureza de uma profissão praticada apenas por necessidade fez de alguns destes professores clientes em lista de espera num qualquer consultório de psiquiatria, ou deu origem a posições defensivas que liquidaram toda e qualquer hipótese de uma relação educativa saudável. Mas, por humildade, sentido de responsabilidade ou mera curiosidade, outros improvisados professores professores se fizeram. No sistema educativo, como na farmácia, há de tudo um pouco.
Os primeiros, autênticos "operadores de manuais escolares" por vontade própria ou por irresponsabilidade administrativa(1), insistiram na reprodução de práticas de ensino inadequadas aos alunos que, efectivamente, chegam às salas de aula por via da massificação do ensino. E o reforço do senso comum pedagógico contribuiu para a sua desqualificação, na medida em que tendiam a desqualificar os seus alunos, quando estes não se ajustavam a performances elitistas acessíveis apenas a alguns. Ao procurarem a legitimação da sua autoridade na especialização académica adquirida, ostracizando a especificidade da sua profissionalidade - a pedagogia - esses professores acidentais deram o passo definitivo para a sua desqualificação profissional.
A ideia de que o ensino não passa de um ofício artesanal, para o qual basta ter jeitinho e uma licenciatura, aconchega os docentes por necessidade em estados de alma ledos e cegos. Porém, os efeitos desta ingenuidade são arrasadores. Tendem a ser ignorados os efeitos secundários das práticas tradicionais, tão injustas como inadequadas, tão avessas às transformações sociais como geradoras de exclusão escolar e social.
A questão das condições da garantia de sucesso, equacionada no seio de uma escola que se diz democrática e para todos, deverá ser colocada em vários planos, que não se excluem mutuamente. Não é raro que a gravidade de tal situação tenda a ser branqueada pela denúncia, quase exclusiva, de outra área-problema do sistema. Sabemos que o trabalho dos professores poderá melhorar se lhes forem proporcionadas melhores ferramentas, que uma maior autonomia e investimentos pecuniários poderão contribuir para o incremento da qualidade do serviço prestado pelas escolas. Porém, não é seguro que mais dinheiro, mais materiais, por si, solucionem todos os problemas de que o sistema enferma. Poderá até acontecer o contrário...
Para se ser professor, não é condição suficiente possuir uma licenciatura, ou conseguir uma "nomeação oficial para um lugar bem próximo do local de residência". Como actividade profissional, o ensino deverá deixar de ser um conjunto de rotinas, dever-se-á acrescentar ao necessário saber científico o conhecimento das pedagogias, do saber fazer e o porquê de o fazer. «Sabe-se que os professores podem chegar a ser melhores profissionais reflectindo sobre o que fazem».(2)
Aqueles que são professores hão-de entender que alguém, por mais incómodo que seja, tem de mexer nas feridas antes que elas apodreçam. Eu bem poderia evitar a escrita de textos interditos, mas há sempre um estafermo de um "grilinho do pinóquio" a instigar-me. E, se alguém tem de ser desagradável, para que alguns narizes não cresçam por pecado de omissão, que o seja eu e fraternalmente o seja.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves

1 Lemos Pires, Noesis, Dez. 98
2 Oberg, 1984, cit in Zabalza, 1994, p:227


  
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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