Quando em 1959 Vergílio Ferreira publicou a primeira edição de Aparição, na colecção "Contemporânea" da Portugália Editora e com uma excelente capa de António Charrua, estava bem longe de supor o êxito que obteria esse seu romance, logo galardoado com o "Prémio Camilo Castelo Branco" da Sociedade Portuguesa de Escritores, e que em quarenta anos tem conhecido sucessivas reedições, está traduzido em várias línguas, foi até hoje motivo de estudos, ensaios e teses de licenciatura, é desde há anos adoptado como livro obrigatório no ensino do Português. Romance estruturado em redor da descoberta do "eu" e da própria redenção pessoal, a partir da experiência vivida por Alberto Soares, que chega a Évora como professor liceal, toda a estrutura narrativa se desdobra nos limites que mais o obceca nessa descoberta, por entre a surpresa e o alarme irradiante, a inverosimilhança de tudo o que se passa em redor e num meio fechado como o dessa cidade alentejana, na angústia do que de mais essencial o homem coloca em questão - ou seja, o sentido dessa aparição que é afinal uma contraditória união e desunião connosco próprios, como verdade ou evidência do que nos é mais profundo, porque como Vergílio Ferreira depois proclamará em Espaço do Invisível 1 (1965) "a evidência do sangue é a indiscutibilidade de existirmos". E nesse encontro connosco, que é a tese que domina todo o sentido filosófico ou metafísico deste romance ou determina os contornos psicológicos das suas próprias personagens, tudo parece irrealizável antes de haver um "tu" para que se apela (e isso será o passo dado em Estrela Polar, 1962), porque a cada passo se interroga se "valerá a pena insistir no que se não pode explicar?". Mas a personagem central de Aparição (o professor Alberto Soares) não pretende "provar" coisa nenhuma no modo próprio de intuir a realidade da vida e a evidência ou o alarme de existir e somente pretende estabelecer essa clara e nítida diferença que em determinado momento da sua descoberta lhe consente "saber" e "ver" - e aí reside, pois, o espírito da aparição, isto é, saber que é mortal e ver que o é quando passa para o outro lado do saber e deseja fazer entender aos outros essa mesma revelação. Não como triunfo sobre a morte, mas como forma de plena redenção da vida. Ou de tudo o mais que está para lá do sagrado e do intangível e somente em instantes de plenitude se descobre ou entende. E é esse sentido do sublime e da evidência que em Aparição se ergue como superior lição das coisas e da vida, não em termos de pura transcendência de que "em todo o real existe sempre o irreal que é dele, e esse é que é", como proclama ainda em Pensar (1992), mas com a lúcida consciência de saber de que tudo está e se afirma "na nossa capacidade de ver esse irreal e do que dele nos apareça", tal como para a maioria dos crentes os deuses não são divinos e apenas existem no plano rudimentar das suas imagens. Decorridos, pois, quarenta anos sobre a sua primeira edição, e tendo em conta as mais de quarenta edições que até hoje se fizeram deste admirável romance de Vergílio Ferreira, importa ainda salientar o sentido de flagrante actualidade que a sua leitura consente aos leitores que hoje ainda descubram este livro e relembrar o registo feito em Conta-Corrente 1 (1980), em que o autor de Para Sempre não deixa de se surpreender: "Por desfastio e não saber que ler, peguei em Aparição. E imprevistamente, eu que já tive de reler o livro várias vezes na altura das reedições, tomou-me uma imensa emoção. Estranha saudade me atravessou de um tempo irreal, de Évora, da aldeia, recuperados numa memória absoluta, num tempo de nunca. Reparo, aliás, que estou agora mais tolerante com os meus livros. Como um velho com os netos? Ou como quem se embevece perante as suas proezas, quando o que lhe resta delas é a lembrança". Serafim Ferreira crítico literário Vergílio Ferreira APARIÇÃO, romance, 43ª. edição Bertrand Editora - Lisboa, 1998.
|