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Destino

Há casos que merecem não ser comentados. Bastam-se na história que encerram e deixam-nos quase sem palavras.
O professor deste caso nasceu e viveu em Moçambique, onde também cumpriu o serviço militar no início da década de 70. Em 1972/73, ainda ao abrigo do chamado regime militar, ingressou no Curso de Instrutores de Educação Física da então Escola de Instrutores de Educação Física de Lourenço Marques. Terminado o serviço militar em Setembro de 1974, permaneceu em Moçambique e concluiu o referido curso em 1977, já depois, portanto, da independência daquele país. Foi professor de Educação Física em Moçambique até final de 1982, altura em que a guerra civil o faz regressar a Portugal. Chegou em Dezembro, tinha 32 anos e dois filhos menores.
Começou a trabalhar como professor de educação física, contratado, ao serviço do Ministério da Educação, em situação económica e profissional extremamente precária, sendo a única fonte de rendimento da família. Entretanto, começa um outro calvário: tentou primeiro, logo a partir de 1983, que fosse reconhecida a equivalência a bacharelato do curso realizado, considerando que tinha sido iniciado ainda sob administração portuguesa e que era um curso em tudo semelhante e com idênticos planos de estudos aos Cursos de Instrutores das Escolas de Lisboa e Porto, entretanto extintas cá em 1975 e com expressa equiparação a bacharéis dos respectivos diplomados. O Ministério da Educação recusou qualquer equivalência.
Depois tentou , durante seis anos, que ao menos lhe fosse reconhecida equivalência para efeitos de continuação de estudos, a fim de poder tentar a conclusão da licenciatura no ISEF. Nada feito, nem sequer respostas obtinha, nem sequer conseguia ser recebido. Entretanto foi conseguindo sucessivos contratos que apenas atenuaram uma difícil situação pessoal, com a esposa ainda desempregada. A falta de reconhecimento de qualquer habilitação própria fez com que se mantivesse, ao longo dos anos, num nível remuneratório extremamente baixo.
Em Março de 1990 é-lhe concedida a equivalência- pasme-se- ao 11º ano!
No ano lectivo seguinte, 1990 /91, matricula-se para continuar estudos e faz o 12º ano, mantendo-se sempre como professor contratado de Educação Física.
Em 1991, com 41 anos de idade, sem alternativa face à irredutibilidade do ME quanto à sua formação anterior, realiza a Prova Geral de Acesso ao Ensino Superior e as provas de aptidão física à Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade do Porto. No entanto, como a equivalência ao 11º ano lhe tinha sido concedida sem média (o que equivale, na prática, à média de 10 valores) poucas hipóteses teria na candidatura pelo contingente geral. Tenta por isso uma candidatura ao abrigo da chamada "habilitação especial", juntando elementos sobre o seu percurso académico e profissional.
Aí vê, pela primeira vez, uma luz a meio do túnel. A FCDEF, face ao Curso de Instrutores de Educação Física dá-lhe equivalência aos dois primeiros anos da licenciatura e aceita a sua matrícula no 3º ano. O Ministério da Educação, recordo, tinha-lhe concedido a equivalência ao 11º ano, oito anos depois do regresso...
Veio a concluir a licenciatura em Dezembro de 1996. Manteve-se sempre a trabalhar, com um esforço físico fácil de perceber, pelas disciplinas que leccionava e pela exigência atlética da licenciatura que frequentava. Foi sempre professor contratado, às vezes com vários e sucessivos contratos por ano.
Acumulou encargos e empenhos, viu estragar-se a sua vida financeira.
Com a licenciatura passou a ter habilitação própria, finalmente em condições de se poder tornar professor do Quadro de Nomeação Definitiva. Catorze anos e muito desassossego depois.
Entretanto, em Janeiro de 1997, o Departamento do Ensino Superior do Ministério da Educação publica o Despacho nº. 2/DESUP/97. Para além e depois de vários considerandos, diz assim: "(...) declaro a equiparação a bacharel para efeitos profissionais dos diplomados que, tendo iniciado os seus cursos de Instrutores de Educação Física nas Escolas de Luanda e Lourenço Marques (actual Maputo) ainda sob administração portuguesa, os vieram a concluir após as independências de Angola e Moçambique (...)".
O professor em causa, provavelmente, sentiu que o destino, mais do que irónico, lhe tinha sido cínico...

Rui Assis
advogado / Porto


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Rui Assis
Jurista
Rui Assis
Jurista

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