1 e 1= 3
A identidade pessoal não corresponde à reprodução de um modelo decalcado da identidade cultural do grupo social de origem. A mobilidade social, ascendente ou descendente, introduz variáveis significativas na experiência existencial seja dos indivíduos provenientes de classes médias seja das classes operárias ou dos camponeses, diferentes das das pessoas que vivem a estabilidade e a permanência sociais. Também o contacto com o exterior, com a alteridade, afecta a visão do mundo dos sujeitos de determinada classe ou grupo sociais e contribui para a construção/reconstrução da sua identidade. Surgem sincretismos resultantes da "mestiçagem" entre o adquirido - a cultura de origem e os contextos já atravessados - e a cultura de chegada, misturada ainda com o projecto do devir. Sincretismos que correspondem à emergência duma nova dimensão do ser - a terceira - não estática, nunca verdadeiramente acabada, e por isso ainda sujeita a metamorfoses, as reconstruções identitárias. Para a identidade e cultura pessoal concorrem não só a origem social e a socialização primária, onde se constrói a mente cultural do indivíduo ( Iturra, 1990), mas também toda a trajectória biográfica que pode atravessar não só vários estratos sociais bem como várias mentalidades. O resultado, a identidade num dado momento, mista de individual e de colectivo (o individual, e mesmo o pessoal, o subjectivo, é também social) é pois ainda um processo e não uma estrutura. É um terceiro instruído (Serres, 1993), uma terceira, quarta, quinta e mais dimensões de ser e estar, uma construção identitária, uma fusão entre o background já possuído e as alternativas culturais constatadas e interiorizadas pelo indivíduo. Vale a pena citar Michel Serres, para ver de perto o seu Terceiro Instruído: "Singular e única, produto dos genes do pai e da mãe, a criança só evolui através de cruzamentos e fusões. Toda a pedagogia retoma o processo de gestação e nascimento do indivíduo. Nado canhoto, aprende a servir-se da mão direita; permanecendo esquerdino, renasce destro pela convergência das duas direcções e hemisférios. Nascido gascão, torna-se francês através da educação, ou seja: mestiço. E sendo gascão em francês pode tornar-se em espanhol, italiano, inglês ou alemão, se aprende uma nova língua e cultura, guardando porém a de origem". Esse terceiro instruído, esse mestiço, corresponde ao processo identitário. A construção/reconstrução da identidade corresponde sempre à integração do novo no já possuído (tal como em determinada aprendizagem), donde resulta não uma adição mas antes uma integração feita um pouco ao modo de cada um. Por isso autoconstruída. Por isso mesmo idiossincrática. Nascendo ou partindo da margem esquerda de um rio, quando nos aproximamos da outra margem, ou quando nos dirigimos para jusante ou, pelo contrário, para montante, ou outras, já não se é só um habitante da margem esquerda. Não se é apenas 1, o filho da cultura de origem. Não se é apenas 2, um adoptado pelo segundo contexto. É-se um terceiro - um pouco dos dois (cada um a seu modo) - e mais ainda: a mestiçagem pessoal, resultado das províncias culturais atravessadas, onde em parte foram interiorizados alguns significados. Daí, como escrevi em Novembro, um e um não serem dois mas sim três. As metamorfoses Com a modernidade, com o incremento das comunicações, com a escola de massas, o indivíduo fica cedo sujeito a constrastes culturais com a cultura de origem, a cultura do berço, do lar, da infância, o que origina metamorfoses culturais nos projectos individuais. Nesse contacto intercultural, o que se comunica não são verdadeiramente as identidades culturais nacionais ou locais, mas antes as pessoas portadoras duma identidade cultural dinâmica, quiçá a médio prazo objecto de metamorfose. Claro que o conceito de metamorfose deve ser usado com algum cuidado. Como refere Gilberto Velho, (1994: 29) "os indivíduos, mesmo nas passagens e trânsitos entre domínios e experiências mais diferenciadas, mantêm, em geral, uma identidade vinculada a grupos de referência e implementada através de mecanismos socializadores básicos contrastivos, como família, etnia, região, vizinhança, religião, etc." Contudo, a metamorfose que uso, permite, através do accionamento de códigos associados aos mais diversos contextos, que os indivíduos estejam sempre em permanentemente reconstrução. Mesmo que não tenham disso consciência. Mesmo que isso não esteja racionalizado. O eu intercultural A identidade constrói-se por referência à alteridade, em relação ao outro que se percepciona e nos dá a imagem de nós mesmos. A identidade e a alteridade constroem-se neste processo de interacção onde o indivíduo percorre o caminho entre o nós e o outro que vai descobrindo. O indivíduo acede à consciência de si, por diferenciação dos outros e assimilando a identidade do grupo que designa e identifica como seu. Depois é-se esse terceiro; um terceiro homem. Reconstrói-se o eu, o nós, e também o outro. O discurso, as práticas e representações sobre os outros, alteram-se. Mas, o discurso sobre o outro está por vezes prisioneiro de contradições. Ou se considera a diferença como desigualdade (quando ela não é percebida do seu próprio ponto de vista) ou se considera a igualdade como identidade, i. e., a diversidade acaba por ser também aniquilada pelo nós, se a queremos igual. Então é vulgar que se pense a diferença (sob o pretexto da igualdade) enquanto separada e incomunicável, com direito à continuidade e performance da sua identidade própria. Estamos nesta óptica, próximos das atitudes supostamente multiculturais quer em termos políticos, sociais, económicos, quer mesmo educacionais, mas por vezes perversamente segregacionistas, pois reprimem as interacções globais dos indivíduos. Em nome da tolerância, em nome dos Direitos Humanos (e já lá vão 50 anos sobre a Declaração Universal), segregam-se as diferenças. O discurso sobre o outro deveria dar origem ao discurso ao outro. Só assim será possível a diversidade na igualdade. Se houver interculturalidade. Se se enveredar pela lógica que designo de intercultural. Por práticas interculturais. Possíveis com a aposta no eu intercultural. Nesse terceiro que tem presente as partes componentes e construtoras de si. Que relativiza as suas práticas e representações. Trata-se dum paradigma alternativo que reivindico para a educação e em geral para toda a vida social. Disso falarei no próximo mês. Até lá. Ricardo Vieira Escola Superior de Educação de Leiria Bibliografia referenciada ITURRA, Raul (1990). Fugirás à escola para trabalhar a terra, Lisboa: Escher. SERRES, Michel (1993). O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget. VELHO, Gilberto (1994). Projecto e Metamorfoses, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
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