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Saramago como um pretexto...

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Quem o afirmou foi José Saramago perante a Real Academia Sueca e nós soubemo-lo no mesmo dia, e pelo mesmo jornal em cuja primeira página se denunciava que "perto de um sexto da população mundial chega ao final do século sem ser capaz de ler um livro ou escrever o nome. Nos países em vias de desenvolvimento, 130 milhões de crianças não têm acesso à educação básica. Outras tantas desistem antes de saber ler e contar. Para as educar a todas, o mundo deveria gastar, por ano, sete mil milhões de dólares suplementares - menos do que os Estados Unidos gastam em produtos cosméticos ou a Europa em gelados.

Se uma voz insuspeita, como a de Saramago, nos diz que a sabedoria não nos é garantida pelo facto de sabermos ler e escrever, então porque é que o título do "Público", um "Quase mil milhões de analfabetos funcionais" impresso a vermelho, nos deixou tão incomodados ?

Como é possível reconhecermos a injustiça, a opressão e a indignidade através dos números que o "Público" divulga e, simultaneamente, aceitarmos que um iletrado, Jerónimo de seu nome, aquele que ao pressentir que a morte o vinha buscar se foi despedir das árvores do seu quintal, abraçando-as e chorando, possa ter sido um mestre da vida de alguém que muito justamente recebeu um Nobel da literatura ?

Se não soubéssemos ler quem nos diria que "o aprendiz pensou: "Estamos cegos" e se sentou "a escrever o "Ensaio sobre a Cegueira" para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira plural tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante" ?

Seria necessário aprendermos o ofício de leitores para tomarmos consciência da nossa cegueira? Até que ponto esta cegueira se deve, também, ao modo como esse mesmo ofício nos tem vindo a ser ensinado?

O drama daqueles que não aprenderam, não aprendem, a ler e a escrever só o é, no momento em que o seu iletrismo os impede de assumir uma presença curiosa e activa face ao mundo e àqueles que os rodeiam, uma presença interpeladora e não resignada.

O que é que isto tem a ver com a aprendizagem da leitura? Como é que isto se aprende através da leitura? É possível aprendê-lo através da leitura? É necessário aprendê-lo através da aprendizagem da leitura? Afinal, para que é que serve aprender a ler e a escrever?

Quantos de nós o fazem com fluência e são incapazes de compreender que "Além da conversa das mulheres são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Será que todos aqueles que leram, ou que estariam capacitados para ler, estas palavras, retiradas do "Memorial do Convento", as compreenderiam melhor que a avó Josefa Caixinha, também ela analfabeta, pobre e já viúva, mas ainda capaz de olhar o céu estrelado e dizer, provavelmente baixinho: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Frase que um dia o seu neto José evocará, perante uma assembleia de homens e mulheres cultos na gélida Estocolmo, como um pretexto para acrescentar que "Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos".

Afinal, para que é que serve aprender a ler e a escrever ?

Blimunda não necessitava de o fazer, já que os seus olhos conseguiam ver aquilo que se encontra para além do olhar. Para Ricardo, o poeta, para quem um "sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo", de que lhe serviu ter um dia aprendido a lidar habilmente com as palavras?

Talvez tenha sido Raimundo o personagem que mais beneficiou com tal aprendizagem, não só porque comia por conta das palavras mal ortografadas, como, sobretudo, por ter compreendido "que todas as coisas têm um lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa". Através das palavras, com as palavras e tendo a noção exacta do "que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse".

Ariana Cosme
Instituro Irene Lisboa/Porto

Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação/Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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