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Preparado para a Aventura

Tal como sumariado, encontrava-me a entregar o primeiro teste do ano aos alunos, a turma A do sétimo ano. Chamei pelo Fernando e entreguei-lhe o teste. Este apresentava um classificação de "Médio". Olhei para a grelha de correcção e confirmei uns setenta por cento. Dirigi ao aluno uns sonoros e felizes parabéns, "muito bom trabalho". Este retribuiu com um sorriso extremamente feliz. O seu tímido corpo, muito baixo e de estatura franzina, parece que tal era o orgulho dos seus movimento enquanto se deslocava para o lugar.
Para mim, a classificação que este aluno atingiu neste teste, constitui a primeira grande vitória da grande aventura que vai ser este ano lectivo.
Na escola onde me encontro a leccionar, as turmas do sétimo ano, constituem no presente ano lectivo os únicos representantes do terceiro ciclo do ensino básico. Sendo que todos os outros alunos são alunos do Ensino secundário. Por razões que me transcendem, foram aqui colocadas sete turmas de sétimo ano e que rapidamente formaram como que um grupo à parte do resto da escola. Fisicamente são muito mais pequenos que os outros. Os seus interesses, também em nada se coadunam com os dos outros, do seu comportamento e das suas atitudes muito se tem falado. Isolados, são terrivelmente energéticos, deixam-se levar pelas suas brincadeiras, o que uns torna num grupo muito contestado e incompreendido por parte de toda a restante população que constitui a escola (docentes, discentes e seus colegas mais velhos) Por mim falo, já que são inúmeras as situações que aparentemente me parecem ser impossíveis de ocorrer numa sala de aula. Tento ser paciente e muito do meu tempo lectivo é investido numa tentativa de socialização destes alunos.
A Turma deste aluno, só por si tem-se revelado como um verdadeiro ninho de casos excepcionais. Provêm quase todos da mesma freguesia, frequentaram uma escola diferente dos outros colegas de sétimo ano. Consequentemente, formam um grupo bastante compacto e adverso a influências externas.
Com o Fernando, na primeira vez que lhe dirigi uma questão, entrou em pânico. Não fez baralho, não se moveu, instalou-se nele um estado de pânico silencioso, que todo o corpo se enrijeceu e nem falar conseguia. Ao fim de alguns segundos articulou uns quantos vocábulos, e num volume que mal consegui ouvir. Os seus olhos como que me imploravam para não me dirigir a ele.

Nesses instantes quem ficou estarrecido e sem reacção fui eu. Sem me ocorrer qualquer ideia sobre a forma adequada de agir e sem saber que comentário fazer, acenei com a cabeça confirmando a sua resposta e passei a questão para outro colega, perguntando se havia alguém que quisesse acrescentar alguma coisa. A "coisa" compôs-se.
Reparei, entretanto que a ansiedade do Fernando diminuíra: o seu corpo, regressou, como que num longo e, sempre, silencioso suspiro a uma posição inicial mais descontraída.
Nos dias que se seguiram, fui prestando mais atenção à evolução deste aluno. Para ele, sair da sua aldeia e vir para a Escola Secundária, terá sido a grande aventura da sua vida, o desafio mor que lhe terá sido imposto. Um professor que o tenta arrancar do seu refúgio silencioso, de início ter-lhe-à parecido algo terrível. Importava, a partir deste momento, ganhar a sua confiança e promover a sua auto-estima.
O Fernando começava agora a sentir algo mais do que os enjoos típicos da primeira viagem em alto-mar. A imensidão do mar que o envolvia causava-lhe um grande desconforto. Como se não bastasse, repararam logo. Como é possível, no meio de tantos aprendizes, logo ele tinha também que começar a ser protagonista.
Cada professor desta turma terá a difícil missão de os iniciar na arte de navegar e progressivamente dotá-los das componentes que os transforme em verdadeiros marinheiros, tal como os seus colegas mais velhos. Para tal urge a necessidade lhes incumbir de responsabilidades e tarefas progressivamente mais complexas.
No caso deste aluno as minhas intervenções começaram por ser bastante cuidadosas, não fosse o meu aprendiz ganhar medo. Cada intervenção para ele era como que subir ao mastro mais alto do navio. O professor tinha que verificar no seu olhar se o momento era propício, caso contrário, o medo às vertigens poderia ser incurável e eu perderia mais um marinheiro.
O Fernando foi ganhando confiança e gosto pela participação. O facto de se sentir útil motivou para a disciplina, e os resultados, pelo menos já começam a surgir. Está assim a nascer um verdadeiro e corajoso marinheiro.

Arlindo Antunes de Sousa
EB 2,3 Júlio Brandão / V. N. Famalicão


  
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Arlindo Antunes de Sousa

Arlindo Antunes de Sousa

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