O Entendimento de Alunos Futuros Professores "Não há nada mais difícil do que iniciar uma nova ordem nas coisas" Maquiavel, o Príncipe Representações do perfil de professor As práticas e as representações sociais de cada professor, quer relativas à interacção na sala de aulas, ao relacionamento com os alunos, à programação e planificação de actividades curriculares ou de complemento curricular, às expectativas que têm da participação dos pais no processo educativo, etc., denotam um "tipo ideal" (parafraseando Max Weber) com o qual se identifica como profissional, e o qual lhe serve de modelo de conduta e de protótipo de "bom professor". Não nos podemos esquecer que o Professor é uma Pessoa - um ser único e irrepetível, com sentimentos e emoções, cognições e percepções, motivações e reacções que lhe são próprias e que advêm de todo um conjunto de experiências, em parte idiossincráticas, que lhe são inerentes. Como recorda Nóvoa, "a identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão." (1992: 16). Por isso penso é que será difícil levar à prática um modelo, um padrão ou uma forma ideal que atenda aos princípios basilares da mudança, e aos quais se submeta um conjunto de pessoas tão diverso, que possuem a priori conceitos, representações, motivações e aspirações necessariamente diversificados, que são os professores já "formados" e cujo denominador comum é por vezes apenas a carreira. Estas variáveis são, ainda, multiplicadas por um outro conjunto com o qual interagem, alunos, escola e comunidade. Será através da relação que se estabelece entre estes factores que o professor é continuamente testado, tendo de adaptar-se às múltiplas variáveis e modificar-se em função das mesmas. A sua identidade é, sem dúvida, um dos factores mais importantes no seu processo de adaptação. Claro fica pelo menos, que hoje já não se pretende que o professor seja apenas um eficaz e competente transmissor de conhecimentos. O seu papel é mais complexo e exigente que nesses dias passados. A metáfora do oleiro e do jardineiro ilustra exemplarmente o salto ocorrido no que toca ao papel que passa a caber ao professor: este não modelará mais a criança como o oleiro modela o barro em obediência a um projecto que só ao artífice diz respeito; o professor deverá ser antes como o jardineiro que cuidadosamente retira as pedras que possam entravar o crescimento da planta. Planta que, tal como a criança, crescerá naturalmente, segundo as suas próprias potencialidades e regras (Carvalho, 1988: 171). O futuro desejado e constantemente adiado Aquando da construção / reconstrução do objecto de pesquisa para o meu doutoramento, quis eu próprio averiguar se os professores e futuros professores se enquadravam hoje num perfil tradicional ou num perfil mais dinâmico e activo, e perceber donde lhes vinham tais influências. Para tal, efectuei um inquérito por questionário, através do qual pretendia captar a essência da visão que professores de carreira e futuros professores duma Escola Superior de Educação, têm do perfil ideal do professor. Não é dos resultados colhidos, aliás bastante estereotipados, que pretendo hoje falar aqui. Apenas de algumas respostas dos então futuros professores, em fase terminal de curso, e um pouco do percurso biográfico de um deles. Foi o Telmo, e ainda a Joana, de quem cito o seguinte depoimento, que me pareceram procurar responder com mais sinceridade e particularidade. A Joana acrescentou um longo depoimento ao questionário: Por experiência e por ouvir falar diariamente que é necessário mudar o ensino, torná-lo mais acessível e atraente à criança, sei que se fala muito mas também que não se faz assim tanto. Como por exemplo: quando vim para a escola superior de educação de Leiria, logo nas primeiras aulas, apercebi-me que os professores mostravam grande interesse e vontade de melhorar o sistema educativo, chegando a alertar-nos para que, como futuros professores, tivéssemos uma participação activa nesse processo. Mas, agora que passaram já 3 anos, constato que muitos deles ficam apenas pelas palavras. Verifica-se que na própria instituição escolar todos sabem que algo tem que mudar, mas, no entanto, todos se acomodam e esperam que alguém tome a iniciativa. Existe um abismo entre a promessa e a realidade, entre a boa intenção e o facto, entre o que a escola é e o que gostaríamos que fosse. Eu acredito que é possível mudar o ensino, torná-lo mais atraente, fazer acreditar as crianças que a escola é um bem e não um "papão". Será que quando acabar o curso que agora frequento, e ingressar no mundo do trabalho, continuarei com esta vontade? Ou será que quando aparecer a primeira barreira virá a desmotivação e passarei a fazer parte também daqueles que somente têm boas intenções? esta é uma pergunta essencial a ser colocada aos futuros professores, pois é necessária uma reflexão a partir do momento em que se decide ser educador. Não se pode pensar que a profissão de professor é uma alternativa para quem não tem mais nada para fazer, mas que exige de nós um verdadeiro prazer em ensinar, oferecendo-nos em troca uma realização pessoal. Mas porque será que os outros, também os nossos próprios professores, estão à nossa espera para modificar o que já deveria ter sido modificado? Não quero repetir o que já disse, mas é essencial que se diga o que se sente. E o que sinto é que os professores que estão a ensinar agora, estão à nossa espera para que concretizemos aquilo de que todos falam, mas que só alguns fazem. É de louvar os que tentam tornar a escola mais atraente, mais criativa, e que tentam também compreender os processos que estão por detrás dela, ou seja, não ver apenas o aluno como aluno, mas como uma pessoa que tem uma vida própria. (aluna finalista num depoimento que acrescentou ao questionário) Na minha pesquisa, tenho vindo a constatar a grande importância das histórias de vida na construção da identidade de cada um e na idealização e construção social de determinado perfil de professor. Tendo a escola necessariamente um papel primordial no prospectivar do futuro, a mudança nos sistemas educativos passa não só pela reconstrução de novos curricula, novas metodologias e novos ideais, mas, também, forçosamente pela própria Reforma dos professores. É através deles que é possível ou não a prática da tão badalada Reforma Educativa. O desafio é grande. Um professor não muda de roupagem intelectual da mesma forma que um jogador despe a camisola vermelha para vestir a verde ou outra. Então, a formação superior e concretamente a formação de professores, tem efectivamente que ser diferente da que se tem processado, isto se se quiser actuar ao nível das atitudes e representações que enformam as práticas pedagógicas. Vejamos um pouco mais em particular, ainda que aqui com a forçosa superficialidade, alguns aspectos do percurso de um aluno futuro professor, dum grupo que me parecia querer assumir-se como alavanca da mudança. Reconhece que a sua forma de ver a educação e o papel de professor, pouco tem a ver com a aprendizagem feita na formação superior. "Apenas os que compreendem o seu passado podem tomar o seu futuro nas mãos" O Telmo Costa O Telmo Costa afigurou-se-me diferente da maioria dos meus alunos. Não era muito brilhante nas notas. Mas era essencialmente um aluno problematizador e reflexivo. Por isso mesmo também me predispus a conhecê-lo melhor para tentar aceder na medida do possível ao gérmen da criatividade e reflexividade que caracteriza alguns profissionais do ensino. O Telmo é filho de uma professora do ensino secundário que de alguma forma lhe exigia que fosse um aluno interessado pelas matérias escolares e trabalhador. Contudo, reconhece que foi o pai que o levou mais a pensar na arte, na criatividade como um valor, e implicitamente também na concepção activa da pedagogia. Mas, diz, os dois - pai e mãe - tinham "aquela concepção tradicionalista [...] de estudar a informação recebida dos professores". Isso foi ao princípio uma matriz de orientação dos pais para com o Telmo, que, de alguma forma, parecia excluir a possibilidade deste se poder realizar profissionalmente através da pintura: E no momento em que eu comecei a manifestar prazer pela pintura, por exemplo, e comecei a pintar, eles ficaram assustados porque eu já não estava a estudar e como já tinha chumbado uns anitos, tiveram grande dificuldade. O Fanha ainda falou como eles. Eram conhecidos do Fanha. Encontraram-se a uma certa altura e manifestaram essa preocupação que eu estava um bocado irresponsável pelos estudos e ele disse que não era preocupação. O Telmo critica bastas vezes a escola tradicionalista e a concepção bancária (Freire, 1974) da acumulação desinteressada de saberes, tocando de perto a visão da escola do futuro, de Agostinho da Silva (1990): Aprende-se para esquecer. No entanto há o futuro interessado no qual o aluno vai e vive a informação que o professor lhe dá e dessas vivências aproveita. Evidentemente que com as cargas curriculares que os alunos têm, essas vivências são quase impossíveis, porque o aluno numa hora vai ter Matemática noutra hora vai ter Português e a vivência que teve na Matemática vai ter que ser desligada, tem que ter um interruptor, e agora vou ligar o Português, não é? Interrompe o gosto... Se a escola fosse voluntária, voluntária neste aspecto, os alunos tinham as várias disciplinas e segundo a sua disposição iam para aquela disciplina e estava lá o professor não a impingir informação mas como se o aluno estivesse a trabalhar aquilo que queria e iria sentir prazer nisso. Recorda por circunstâncias semelhantes também uma professora de matemática do secundário que "despejava como se fosse um metralhadora a matéria e pouco se estava ralando se o insucesso existia ou não, se os alunos estavam a apanhar ou não". Todavia, diz que são sem dúvida os melhores momentos que permanecem. As más recordações ficam mais no fundo da memória. Mas, mesmo assim, não esquece a professora de educação visual que lhe deu negativa. Estava na escola onde a minha mãe leccionava. Era mau para mim. Lembro-me duma professora de Educação Visual... Tive negativa com ela. Ela exigia muito... era também ligado ao sistema de ensino tradicionalista e na altura do Estado Novo... onde o desenho artístico tinha de ser rigoroso... tínhamos de ser rigorosos no desenho e era uma coisa que eu não conseguia ser. Aprendi que a expressão é mais importante do que a técnica. A técnica adquire-se facilmente, rapidamente, e a expressão, essa, é muito mais importante. Depois de ingressar no ensino superior, ainda sem saber bem que iria ser professor, foi chamado para o serviço militar, onde esteve 14 meses. Esteve nos serviços cartográficos do exército e o que recorda mais desse tempo da tropa "é a grande amizade que nós tivemos lá uns pelos outros". Recorda-se de rir com os seus colegas sobre o modo usado pelos imediatamente superiores para lidar com eles. Hoje transfere essa análise para o ensino, pondo em prática o método comparativo, e vê que essa relação existe muitas vezes entre professor e aluno. Mas diz que não retirou muito conhecimento do tempo da tropa. Aprendeu sim, foi relações humanas com a interacção: Apenas as relações humanas foram boas, encontrei pessoas de todos os lados, pessoas com quem tive dificuldade de adaptar-me... pessoas que não eram do meu meio social... foi violento. Lembro-me que o meu maior confronto foi com um indivíduo que tinha vindo de uma rua escura do Porto, e a mãe dele era prostituta, e as irmãs também. Um indivíduo bastante violento... e tornámo-nos mesmo bastante amigos. Entende que o mais importante dum professor é ser reflexivo. Deve estar sempre a sê-lo, sem necessidade de estímulos monetários, que é normalmente o argumento do docente para justificar os seus parcos interesses pelo processo educativo escolar: A questão fundamental é reflectir mesmo sobre o eu. Hoje cheguei aos alunos? Talvez sim, talvez não... É importante reflectir sobre o eu profissional e o eu pessoal não acha? Considera que para obter as classificações idealizadas ele próprio acabou por deixar de ser ele mesmo. Pôs a máscara para não se prejudicar. Representou o que os outros queriam que ele aparentasse. Para si, os colegas e grande parte dos professores estão estagnados: "As pessoas estão estagnadas aqui na escola, não estão?", perguntava-me a ver a minha reacção, mas indiciando a sua opinião com a pergunta que me fazia. E os colegas não são criativos em sua opinião. "Não são criativos porque a quantidade que a escola exige não permite criar... Já fui a um debate sobre a preguiça e a criatividade. Estava até o professor Agostinho da Silva...". E se o professor não é uma pessoa activa, diz, interveniente, produtor de mudanças, também não pode construir cidadãos activos. Eu acho que é importante uma pessoa além de ter a sua profissão, professor neste caso, ter um hobby. Não de passividade, ser de intervenção, não ser unicamente de ver a telenovela à noite. Ser de actividade, de intervenção. Como é que um professor passivo pode provocar actividade no aluno? Porque o que se quer na escola é actividade, que os alunos sejam activos, não é? Quer-se que haja actividade, que não haja passividade, e como é que um professor passivo pode tornar...? Eu acho importante... Se calhar os meus três professores que eu tive no secundário, eles produziam... Uma era pintora, outro era o Fanha, que escrevia, e outro era o Rebelo que é uma pessoa que gosta de música, pronto tinha actividade e a actividade dele era provocar, ir para fora do horário escolar, e estar connosco muitas vezes. Penso que uma pessoa que tenha essa intervenção, que tenha esses hobbies, está mais aberto e preparado para ter uma visão de professor que nós defendemos. Conclusão A reflexão é um processo fundamental no desenvolvimento profissional e começa normalmente com experiências pessoais, pequenos incidentes, interacções e fases que fomentam a reflexividade. E é nessas primeiras reflexões, muitas vezes autobiográficas, que se inicia o processo hermenêutico de si próprio: procurar entender o seu próprio entendimento, base fundamental de controlo das aprendizagens: "Apenas os que compreendem o seu passado podem tomar o seu futuro nas mãos" (Kelchtermans, 1995: 19). O Telmo parece ter um percurso que o fez pensar-se a si próprio relativamente aos outros. Reflectiu os seus próprios valores em comparação com a alteridade. Tem uma cultura pessoal avessa à reprodução dos conhecimentos descontextualizados que tantas vezes a escola faz. O mesmo sente em relação à reprodução da tradição só por tradição. Aprendeu a problematizar o quotidiano, atitude que bastas vezes lhe trouxe problemas nas escolas por onde passou. Não raras vezes era por isso estigmatizado ora como de intelectual, ora como de louco, i.e., diferente. É apologista de mudanças sociais e educativas. A insatisfação do presente e a angústia resultante da concepção do projecto do devir faz parte da sua vida desde a infância. O Telmo reivindica uma escola activa, que ponha os alunos a fazer perguntas e a intervir no mundo onde se realizam. Esta vertente de intervenção cívica está já presente na sua vida antes da sua formação académica de professor. Está convicto ser esta uma faceta importante do ethos do professor - intervir activamente na própria sociedade de que a escola é um microcosmos. Ricardo Vieira, Escola Superior de Educação de Leiria Bibliografia referenciada CARVALHO, Adalberto Dias de (1988). Epistemologia das Ciências da Educação, Porto: Edições Afrontamento. FREIRE, Paulo (1974). Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. KELCHTERMANS, Geert (1995). "A utilização de biografias na formação de professores" in revista Aprender, 18. NÓVOA, António (Org.). (1992). Vidas de Professores, Porto: Porto Editora. SILVA, Agostinho da (1990). "Essa escola vai avançar, mensagem enviada para um debate sobre a escola cultural" in A razão, 4.
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