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Sem infância

Brincar, sonhar

"(…) Preferia estar a estudar, ou a brincar, mas se eu não trabalhar o dinheiro não chega para alimentar toda a família. Nunca fui à escola, por isso não sei ler nem escrever. Gostava muito de um dia poder estudar, para poder ter outro emprego, que pagasse mais para que nem eu nem a minha família tivéssemos que passar fome, ou que trabalhar no sisal (...)".

Desabafo pungente do Everaldo, petiz brasileiro de 13 anos, que desde os 8 tece cordas de sisal. Ganha cerca de 500$00 diários (entre as 3 horas da manhã e o meio-dia) tecendo 18 cordas de 80 metros cada! E podia ser uma menina a dizer o mesmo uma vez que, em muitos países, são elas as principais vítimas do trabalho infantil.
A impossibilidade de muitas crianças poderem gozar de tempos livres prende-se, entre outras razões, com o trabalho infantil. Nesta época de globalização quase planetária a Confederação Mundial do Trabalho (CMT) refere cerca de 250 milhões de crianças trabalhadoras no mundo, com idades entre 4 e 15 anos e, daquelas 120 milhões a tempo inteiro. É sabido que muitos dos que abandonam a escola e que sofrem reprovações sucessivas vão engrossar estas fileiras!
Por seu lado, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) indica a seguinte distribuição por regiões: 153 milhões na Ásia, em África 80 milhões e na América Latina 17,5 milhões. E, calcula que só nos EUA trabalhem 5,5 milhões de jovens entre os 12 e 15 anos. Para a Europa desconhecem-se números totais, porém, pelo menos em Itália, Portugal e Reino Unido o problema existe.
É difícil determinar a respectiva dimensão pois o flagelo vai ganhando novas formas - por ex. o trabalho ao domicílio, ao abrigo de acordos de subcontratação, e a actuação em espectáculos. Sem dúvida o crescimento do trabalho infantil resulta em grande parte da cumplicidade entre o empregador, a família, a própria criança e os colegas de trabalho, com o fito de esconderem a situação.
Ao pensar no trabalho infantil devemos ter em conta diversas questões. Com efeito, embora ele predomine nos países pobres também há crianças trabalhadoras, até desempenhando tarefas perigosas, na maioria dos países ricos. Sempre que um jovem realiza trabalhos de risco há alguém a beneficiar deles, pode ser um empregador, um cliente, um pai - quer dizer que por mais pobre que seja a família não havendo quem esteja pronto e em condições para explorar essa mão-de-obra tal não sucederá. É muito reduzido o número de crianças a laborarem em indústrias de exportação (calcula-se em menos de 5%), ao passo que a maioria labuta na obscuridade, fora do alcance das autoridades e da vista da comunicação social. As sanções e boicotes dos consumidores e dos governos só atingem as indústrias de exportação, pelo que são desejáveis outras formas de pressão que não redundem em futuros prejuízos para as crianças.
Citando a UNICEF, os 7 tipos principais de trabalho infantil são: o emprego doméstico (de todos o mais esquecido), o trabalho escravo e o trabalho forçado, a exploração sexual comercial, o trabalho em indústrias e plantações, o trabalho de rua, o trabalho no seio familiar e o trabalho das meninas; nenhum deles ocorre isolado em qualquer parte do mundo.
A mesma Organização considera haver exploração do trabalho infantil quando reveste as seguintes características: ser feito a tempo inteiro sendo a criança muito jovem; obrigar a trabalhar durante muitas horas; ser realizado nas ruas e em más condições; provocar tensões de tipo físico, psicológico, emocional; prejudicar o desenvolvimento psicológico e social; ser feito a troco de magros salários (ou até para resgatar dívidas familiares); implicar uma responsabilidade excessiva; impedir o acesso à escolarização e comprometer a dignidade e a auto-estima da criança.
Confundir uma saudável forma de aprendizagem que constitui a colaboração em tarefas caseiras (desde que adequadas à idade das crianças e que não colidem com a frequência escolar), com a exploração do trabalho infantil, é o mesmo que tomar a árvore pela floresta. Tal confusão só pode interessar a quem o justifica com a pretensão de desviar a infância de maus caminhos. Porém, cremos que toda a gente estará de acordo que é intolerável e tem de ser combatida pelas autoridades, e por todos os meios, qualquer forma de trabalho infantil, das habilidades artísticas, desportivas, sexuais e/ou laborais das crianças.
A CMT e a OIT, na qual têm assento governos, associações sindicais e associações patronais, têm tomado diversas iniciativas de combate a este flagelo, sendo de destacar o programa IPEC («Programa Internacional para a abolição do trabalho infantil»), que a OIT já tem operacional em 25 países.
De facto, é aos adultos que cabe concertar esforços para ser erradicada a exploração do trabalho infantil. Sem dúvida objectivo a parecer utópico mas, urge tudo fazer para que, por fim, venha o dia em que seja considerado um crime de lesa-humanidade, logo, deixe de existir.
Os trabalhadores sociais e os membros das organizações locais e das organizações não-governamentais (ONG) estão em boas condições, senão mesmo nas ideais, para sensibilizarem e mobilizarem os seus membros, e por eles boa parte da sociedade civil, para esta luta. Não o esqueçamos, as marcas que ficam, para sempre, em toda a criança trabalhadora são comparáveis ao ferro que marcava o escravo, ou à tatuagem que marcou os prisioneiros dos campos de concentração. Por isso, é imperioso empenharmo-nos, com firmeza e sem desistência, para dar a cada criança o direito inalienável de o ser.
Só assim estaremos a cumprir o espírito e a letra do artº 27º da «Convenção sobre os Direitos da Criança» (de 1989) que estabelece: "Os Estados-Parte reconhecem à criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social".
E que o trabalho infantil é um problema a preocupar também as crianças atesta-o o facto de alunos dos 5º e 6º anos o elegerem como um dos temas de discussão, no âmbito da iniciativa «A Assembleia e a escola», que decorreu na A.R., em 1 de Junho passado.
Por fim, merece ser conhecida a campanha «Roupa limpa» a decorrer, actualmente, em países europeus. Pretende-se fazer pressão junto das empresas, por exemplo através de abaixo-assinados para a criação de códigos de conduta, a fim de que as marcas internacionais respeitem os direitos humanos, e a atitude dos consumidores é aqui fundamental. Fica a pergunta, para quando a adesão do nosso país à campanha?
Em suma, o nosso dever é não permanecermos indiferentes a este drama do nosso tempo, assim temos obrigação de nos empenharmos, a fundo, na busca de soluções definitivas.

Elisa Lopes da Costa

Para saber mais:

"Comunicado final do Seminário sobre Trabalho Infantil na Europa (…)",
Porto, 27-28 de Março de 1998, in Jornal Fraternizar, nº 113, Maio 1998, pp. 23-24.

"Conférence international sur le travail des enfants - La législation et son application"
(Oslo, 27-30 octobre 1997), Genève, BIT-ILO, 1997.

"Directiva 94/33/CE do Conselho de 22 de Junho de 1994 relativa à protecção dos jovens no trabalho"
in JOCE, Lisboa, nº L 216, 20.08.1994, pp.12-20
(não transposta para a legislação portuguesa).

Marcha Global pelo fim do trabalho infantil
, Lisboa, «Secretariado português», 1998.

O Progresso das Nações 1998
, Lisboa, UNICEF, 1998.

"Trabalho infantil", in Maio, Lisboa, nº 10/11, Abril-Set. 1998, pp. 12-18.

Situação Mundial da Infância 1997 («A questão do trabalho infantil»), Brasília, UNICEF, 1997.

"Trabajar… un juego de niños?", in INTERMÓN, Barcelona, nº 436, 1er Trimestre 1998, pp. 7-11.


  
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

Elisa Lopes da Costa
CIDAC, Lisboa
Elisa Lopes da Costa
CIDAC, Lisboa

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