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De José Saramago a Egas Moniz

OU O NOBEL COMO PRETEXTO DE HISTÓRIAS DE VIDA


JOSÉ SARAMAGO(1922-)

A atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago deixou o país eufórico. Uma distinção destas não deixa ninguém indiferente. Em primeiro lugar, os seus muitos leitores que partilharam, com júbilo, esse galardão. Em segundo, os políticos que não não perdem ocasiões destas para se colarem aos laureados. Em terceiro, os que nunca o leram mas que se precipitaram para as livrarias, na compra de um livro (não importa qual) do agora nobel. E, muito em especial, os que o denegriram e censuraram; esses ficaram, no mínimo, profundamente incomodados. Afinal a História, a de letra maiúscula, mostrou de que lado estava a excelência e a razão. A outra história, a de letra minúscula, que esses indivíduos "escrevem" (nas folhas baças do diário da república) quando estão, transitoriamente, no poder, esfumou-se num ápice.
Indiscutivelmente, o nobel a José Saramago veio reforçar o nosso orgulho (ainda que todos o achássemos um prémio, mais do que merecido, só que atrasado no tempo). A nossa identidade nacional (que já tanto havia beneficiado com a EXPO 98) recebeu um novo e forte alento, numa altura em que a regionalização ameaça subvertê-la (mas isso, são contas de outros rosários).
As repercussões do nobel poderão fazer-se sentir, de forma explícita, nas diversas áreas da Cultura portuguesa, desde que haja vontade para tal. No campo do ensino, aguardamos com alguma expectativa o impacto desta decisão da Academia. Irão os autores de manuais escolares ultrapassar os preconceitos ideológicos e religiosos e passar a incluir mais textos de Saramago? Irão os professores, pelo menos aqueles que viam na inovadora escrita de Saramago uma dificuldade acrescida ao ensino da pontuação segundo a ortodoxia das gramáticas, sentir-se legitimados nas suas opções literárias? Iremos assistir a um fenómeno semelhante ao que se passou no desporto, após a conquista das medalhas de ouro nas olimpíadas por Carlos Lopes e Rosa Mota, com a adesão massiva de jovens à prática do atletismo? Será que o nobel da literatura levará mais jovens à leitura e à escrita?

EGAS MONIZ(1874-1955)

Mas o nobel de 1998 fez-me recordar o outro laureado português, o de 1949 - Egas Moniz. Não é meu propósito relembrá-lo nas actividades onde onde foi mais conhecido - como investigador iminente (em torno dos trabalhos de lobotomia que estiveram na origem do prémio), médico, professor universitário (em Coimbra e Lisboa 1), diplomata (embaixador em Madrid) ou mesmo como político (começou como «deputado progressista por Tondela», sendo, para a época, um ousado defensor do ensino laico, e chegou a Ministro dos Negócios Estrangeiros em 1917). Aqui, quero recordá-lo através de um trabalho de índole literária, a «auto-biografia da infância e adolescência», que deu a conhecer num livro publicado em 1950, A Nossa Casa 2.
Trata-se de uma obra curiosa que procura «pôr em equação as forças hereditárias e elementos educativos» que fizeram de Egas Moniz uma figura ímpar. No livro há lugar de destaque para a escola: seis capítulos são-lhe inteiramente dedicados (I - Na escola do Padre José, XIV - O primeiro exame, XV - Colégio e férias, XVII - A música no colégio, XIX - Em Coimbra, XX - A greve dos estudantes) mas abundam referências esparsas em muitos outros.

A Escola de Pardilhó
Nascido em Avanca, aí viveu com os pais e dois irmãos (Luciana e Miguel) na Casa do Marinheiro a tal «Nossa Casa» que deu título ao livro. Mas foi afastado desses familiares mais queridos que fez todos os seus estudos. Frequentou a primária de Pardilhó, uma aldeia próxima, onde residia o seu tio e padrinho Abade, o que lhe valeu a alcunha de o «Abadinho» entre os colegas que andavam na Escola do Padre José Ramos. Um mestre que não dispensava a ajuda pedagógica de «Santa Luzia», nome por que era conhecida a palmatória (!), na preparação dos seus alunos para o exame de instrução primária (com ditado, contas e prova oral) a realizar na Escola do Conde de Ferreira, em Estarreja.

O Colégio de S. Fiel
A família, ou com maior rigor o tio Abade, seu verdadeiro tutor, queria que ele seguisse a carreira eclesiástiva e encaminha-o para o colégio dos jesuítas de S. Fiel, para os lados da Covilhã. O tio, que fez questão em o acompanhar nessa primeira viagem, para de tudo se inteirar, é informado pelo padre Subdirector, no capítulo da alimentação, que «só tem a pagar de extraordinário o vinho, se desejar que lhe seja fornecido» (outros tempos em que o néctar era divino e se recomendava!)
No Colégio de S. Fiel ministrava-se «uma boa educação humanista e científica» e dava-se «certo desenvolvimento à parte experimental», garante o autor. Os exames, feitos, no Liceu de Castelo Branco, perante júris presididos por professores do ensino superior como era regra na altura, comprovavam essa qualidade. Egas Moniz não deixa, no entanto, de lamentar «a exagerada vida religiosa que nos levava tempo e roubava actividade».
Mas as dificuldades económicas em que a família havia caído, no último ano dos estudos secundários, levam-no a trocar S. Fiel pelo Liceu de Viseu (onde andava o seu irmão). Aí distinguiram-no «com justiça, em literatura, com exagerada benevolência em latim e por acção uniforme de clasificação em inglês» (donde se prova, mais uma vez, que os exames são uma malha de rede larga por onde não passa só o mérito de cada um).

A Universidade de Coimbra
Matricula-se em Coimbra, em 1891, no 1º ano de preparatórios, que tanto davam para a carreira militar como para medicina; também o amor às matemáticas o fez hesitar no curso a seguir. Todavia, opta por ser médico e, no ano de 1899, forma-se pela douta Universidade. Uma Coimbra que Egas Moniz qualifica de «trocista» (de praxes humilhantes para os caloiros), «violenta» (de trupes agressivas a usarem mocas, palmatória e tesoura como instrumentos de tortura), «desordeira» (de greves estudantis, como a que teve origem no foro académico, na qual o Governo ordenou o fecho da Universidade e a expulsão dos alunos de Coimbra), «tradicionalista» (onde sem capa e batina ninguém podia entrar nas aulas), «foliona» (de um estudo marcado pelo "toque da cabra", onde até a boémia era ritualizada, pois às quartas e sábados não se pegava em livros) e «melancólica» (corporizada na poesia e nos cantares da Tuna e do fado Hilário).
Ao longo de todos esses anos, Egas Moniz, «criança demasiado irrequieta» e «excessivamente folgazão», como se auto-define, nunca perdeu de vista os deveres escolares e as constantes recomendações familiares para «fazer sempre boa figura». Foi por isso um bom aluno, que se afirmou num ciclo infindável de exames que testavam, a todo o momento, os estudantes desses tempos. Fez um trajecto escolar num mar de adversidades: longe dos seus familiares, enfrentando as dificuldades financeiras da família (que o obrigaram, enquanto estudante de Coimbra, a dar explicações e a trabalhar na publicação da sebenta de matemática, chegando até a preparar-se para o concurso para professor de liceu) abalado por enormes contrariedade e desgostos (morte prematura dos irmãos, do pai, da mãe e do tio-padrinho, todos antes de ele concluir a licenciatura!) Todavia, este contexto (hoje justificativo do insucesso) não o impediu de ter boas classificações. A que se deve o sucesso escolar Egas Moniz? Para lá das suas qualidades, sem dúvida, à sua família que teve sempre uma importância enorme; mesmo não estando próxima não deixava de fazer sentir o seu suporte e orientação.

As Histórias de Vida
Os investigadores sociais têm vindo a recuperar a metodologia das histórias de vida (de que as auto-biografias constituem uma modalidade), dando-lhe dignidade científica e académica. O jornal a Página conta, entre os seus colaboradores mais recentes, dois especialistas neste domínio - Raúl Iturra e Ricardo Vieira. Este, tem-se centrado nos professores enquanto Raúl Iturra privilegia a gente "vulgar" do mundo rural. Dele se aguarda, com expectação, o seu próximo livro O Crescimento das Crianças, a editar pela Profedições. A partir da análise das história de vida e genealogias de três mulheres - Victoria (Pencahue, Chile), Pilar (Vilatuxe, Espanha) e Anabela (Vilaruiva, Portugal) - e pelo uso do método comparativo, confronta «três povos, unidos pela história e pela memória social». Aí se demonstra como «as crianças crescem sob a orientação do contexto histórico do passado, do presente, e dos seus objectivos de vida». O percurso escolar de Egas Moniz, aqui aflorado em traços largos, corrobora esta tese.

Post scriptum à laia de recado ao MC

A finalizar, deixo aqui um alvitre ao Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas: a "Biblioteca Virtual dos Autores Portugueses", edição de 1998 da Biblioteca Nacional, deve rapidamente ser alargada a obras esgotadas ou desaparecidas há muito do circuito comercial livreiro. Não foi esse o critério seguido para os dois primeiros discos; aí estão incluídas "grandes obras da literatura nacional" - Os Lusíadas, Peregrinação, Os Maias, Mau Tempo no Canal,… -, todos elas, no entanto, fáceis de encontrar em qualquer livraria. Nesta louvável iniciativa editorial, houve apenas uma mudança de suporte, do papel para o CD-ROM.
A única forma de ultrapassar o argumento que os editores levantam à reedição de obras antigas, o da não rentabilidade económica, é o Ministério da Cultura, numa inegável função de serviço público, assumir a publicação em CD-ROM desse tipo de livros. O CD-ROM tem, de facto, a enorme vantagem de permitir, a um preço acessível, a inclusão de várias obras num só disco. E na fase de lançamento, o MC poderia seguir o modelo anterior, ou seja, na compra do jornal Diário de Notícias cada CD-ROM era então adquirido a 750$00.
Para além do livro de Egas Moniz referido neste artigo, poderíamos sugerir, a título de exemplo, a reedição de obras em que o tema escola está presente: Adolfo Casais Monteiro (Adolescentes), Aleixo Ribeiro (Bússola Doida), Celeste Andrade (Grades Vivas), João Gaspar Simões (Internato), Joaquim Ferrer (Ilha Doida), Manuel Mendes (Bairro), Patrícia Joyce (O Pecado Invisível), Tomás Ribas (Montanha Russa) e tantos, tantos outros, que correm o risco do esquecimento.

Luís Souta
CIOE / Escola Superior de Educação de Setúbal

Notas

(1) No livro de curso, dos finalistas de medicina de 1940, da Universidade de Lisboa, no capítulo dedicado aos mestres («a que devemos principalmente… muitas cólicas»), caracterizam assim o responsável pela cadeira de neurologia do 5º ano:

Em ambos os hemisférios
Do equador aos dois polos
É um ás a descobrir
As nascidas dos miolos.

(2) EGAS MONIZ, António (1950) A Nossa Casa. Lisboa:
Paulino Ferreira, Filhos, Lda, 413 pp.
[ilustrado com 44 fotografias].


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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