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Quem sou eu e quem os outros pensam que sou?

Cá estou eu embrenhado de novo nos meus papéis. Papéis manuscritos, dactilografados, impressos, policopiados, etc. Exames, planificações, reuniões, orientações, aulas, enfim, a prática desse modo de ser (o nome tomo-o de empréstimo da obra de João Lobo Antunes) professor. Uma profissão contudo esvaziada de poder, de reconhecimento, de status, (não uso o conceito de estatuto já que sobre o estatuto da carreira docente se aguardam melhoras) que a nossos olhos contém uma enorme quantidade de funções (recuso-me aqui a escrever papéis sociais porque tais, por definição, não são propriamente sinónimos de funções, mas antes correspondem a uma resposta às expectativas dos outros com base no estatuto reconhecido) que bem conhecemos e poucas vezes reflectimos.
Ser professor acaba por ser assim burocrata, técnico, escritor, leitor, instrutor, educador, pessoa, etc. Mas os "outros", esses não sabem bem o que fazemos de facto. É talvez por isso que acabo por ter dificuldade em lhes responder o que vou fazer para a escola quando as crianças, os adolescentes e os adultos estudantes estão ainda por aí no seu modo de ser aluno - isto é, sem aulas, logo em férias. Foi assim no dia um de Setembro comigo e possivelmente com muitos de vós nessa ou noutras datas, presumo.
Pois é, os "outros" (na acepção antropológica devem ler-se aqui como os não professores, ou quando muito distantes da cultura escolar) ou me perguntam se estou de férias, ou quando é que elas terminam. Foi assim há dias com o caso que vos vou contar. Um empresário de uma pequena aldeia de Leiria, o sr. Manuel, que se dedica a fazer e a instalar fogões de sala, aqueles que nos aquecem ou que servem de móvel para pendurar quadros em muitos apartamentos onde a lenha é escassa ou é substituída pelo calorífico eléctrico ou a gás que aí se coloca (de acordo com as suas próprias palavras), que gosto de cumprimentar e trocar algumas ideias, perguntou-me enquanto aguardava que me mudassem o óleo do automóvel: - Então... de férias?
Em situações semelhantes costumo hesitar e procurar usar uma resposta simultaneamente émica, na perspectiva do mundo do interlocutor, ética, na perspectiva do trato diplomático, mas simultaneamente pedagógica, que de alguma forma contribua para alterar as representações que se têm "normalmente" dos professores: 3 meses de férias, metade do dia livre,... etc. Diga-se, em abono da verdade, que não tenho colhido bons resultados.
Não me parece que tenha conseguido grandes mudanças pessoais nos sujeitos com quem tenho usado esta estratégia. As mesmas pessoas voltam a fazer-me as mesmas perguntas, alimentadas pelos mesmos estereótipos, tempos volvidos.
Pois o Sr. Manuel, amigo, simpático, sempre com uma pequena gargalhada no final das frases, como que em auto-elogio após uma grande descoberta, com sucesso empresarial na comunidade que habita, estava também na oficina, mas, como vim a saber, não por aí ter qualquer automóvel. Estava de férias. Contou-me que este ano resolvera parar no mês de Agosto. Aliás, no nosso país quase tudo está parado no mês de Agosto ou se encontra em Romarias, por que não também a sua fábrica? Disse-me que tem um trabalho dividido por tarefas. Penso que acrescentou que cada empregado tem a sua coisa para fazer, embora também possa ser fruto da interpretação racionalista taylorista que fiz. Pelo menos essa fotografia mental ficou-me presente. Então, continuou o Sr. Manuel, não dava para irem só alguns empregados de férias.
Como o conheço bem, resolvi então desta vez ter uma resposta mais irónica, mais próxima das suas afirmações terminadas em riso, e talvez até um pouco mais altiva, confesso. Eram 18,30 horas e acabava de regressar da escola, depois de um conselho científico que durara largas horas e ficara a meio da ordem de trabalhos. Respondi-lhe então à questão se estava de férias:
- Claro, eu estou sempre de férias!
Pegando no mesmo tom que o meu, ele puxou da sua filosofia popular e retorquiu com ar de vitória:
- Quem diz a verdade não merece castigo! Vocês ganham bem, saem cedo e estão sempre de férias!
Rimos de novo. Desta vez também o próprio mecânico, o Pedro, rapaz dos seus trinta anos, mas bem conhecedor não só das suas lides técnicas bem como das de muitos outros. Talvez porque um dia ficou a saber que eu ensinava "professores", o Pedro tem estado em minha defesa. Foi ele próprio que disse ao Sr. Manuel:
- Você pensa que são todos como você, ou quê? Nem todos são patrões. Você é que pode tirar férias quando quiser. Agora você sabe lá o que é trabalhar com a cabeça. Olhe que aqui o Sr. Professor andou a estudar até agora, o que é que pensa?!

nacional romarismo

Apesar de falarmos culturas diferentes, a conversa continuou. Culturas sim! Não se trata apenas de terminologia ou de códigos restritos ou mais elaborados mas outrossim, de culturas diferentes em tentativa de diálogo. Diálogo de identidades pessoais diferenciadas, numa dinâmica de flexibilidade com vista a sair de si próprio para entrar no mundo do outro; na cultura do outro sentida por dentro. Entre os três, era o Pedro quem mais conseguia viajar pela cultura dos outros dois, da minha e do Sr. Manuel. Era portanto o mais intercultural.
Chegou-se à altura de eu dizer que estava a mudar o óleo do carro porque já tinha ultrapassado os quilómetros previstos. O Pedro, prontamente como sempre, veio de novo em minha defesa:
- Isso também não é assim tão linear (um conceito que me pareceu escolhido para mim), tão ao milímetro (expressão popular; aposto ou continuado que o Pedro usou quanto a mim para manter dentro da conversa o Sr. Manuel)...
- Mas amanhã vou a Lisboa e ir e voltar são mais uns quantos quilómetros, retorqui eu.
- Vais à Expo?! Questionou-me o Sr. Manuel.
- Por acaso até vou! Respondi-lhe eu.
E a verdade é que ele adivinhou. Ou por outra, de acordo com os seus quadros mentais, que poderia ir eu fazer a Lisboa senão à Expo, para onde todo o mundo parece correr de momento? Estudar? Estudar não porque sou professor e em Leiria, sabe-o ele. Contudo, a verdade é que aí vou diversas vezes à Universidade, às bibliotecas, ao Ministério da Educação, e a uns tantos sítios que de repente nem agora me vêm à cabeça.
Mas da cultura de massas domina também ele uma boa parte. E sabe que nesta conjuntura há uma série de romarias que têm acolhido muitos jovens e outros e que entre elas é proibido proibir ir à Expo. Ou melhor, é obrigatório ir à Expo. Ir a Lisboa é ir à Expo. Por quê Nacional Romarismo? É que de repente, seja por ser final de século, de milénio, seja por ser Verão, seja lá por quê, as grandes concentrações demográficas com direito a passagem pela caixinha mágica, têm sido a Expo 98, claro, mas também o Encontro Mundial da Juventude, na Costa da Caparica, o Avante, na Atalaia, os Festivais de Rock, na Zambujeira do Mar, em Paredes de Coura e não sei mais aonde, o Encontro de Veleiros em Alcântara, as Festas da Cerveja, e, também, claro, as Férias no Algarve, precedidas e terminadas com longas procissões de trânsito. Mais que estas, só as actuais viagens na Internet para saber do affaire do Bill.
Mas, dizia eu, nessa linha, as probabilidades de acertar onde é que alguém vai quando sai do mundo que os outros pensam ser comum ao seu, é elevadíssima.

moral da história

As pessoas têm as suas ideias, convicções representações do mundo solidamente alicerçadas nas suas estruturas cognitivas. A novidade surge aos sujeitos como estranha e dificilmente altera essa visão do mundo construída ao longo de toda a história de vida de um indivíduo. Mesmo que se ouça outra opinião, com os tempos apaga-se e perduram as mesmas imagens e percepções das pessoas e das coisas. Bem sei que qualquer acção de formação conducente à mudança ou ao desenvolvimento duma pessoa, ou mesmo duma comunidade, bem como, claro, à alteração de representações, só será eficaz se suscitar a participação activa dos actores nesse mesmo processo de intervenção simultaneamente pessoal e social, e simultaneamente de investigação de um objecto que é também ele próprio sujeito.
É assim também com os próprios professores a propósito da mudança das suas práticas e representações escolares. É um pouco o Sr. Manuel que acaba por estar presente em muitos de nós quando somos confrontados com ideias diferentes, com a mudança ou com as sucessiva reformas, que finalmente, reflexão feita, mais não são que uma volta sobre a forma.
Como já dizia Dewey, há um século atrás, o conhecimento é exterior, mas o conhecer, o processo de conhecimento, esse é interior. Daí que qualquer mudança educativa apresentada do exterior, exterior ao micromundo cultural de cada escola e de cada pessoa que vive em cada professor, para ser assimilada, tem que ocorrer em comparação com o próprio entendimento e processo de construção do seu Eu - a sua história de vida. A reflexão sobre esse processo, a auto-reflexão biográfica, é quanto a mim a via para o sujeito se compreender a si próprio - aceder à sua própria hermenêutica - e assimilar ou rejeitar a novidade duma forma argumentada e contextualizada. Disto falarei mais tarde.

Ricardo Vieira
Mestre em Antropologia e Sociologia
Doutor em Antropologia Social
Professor da ESE de Leiria, 2400 Leiria
e-mail mop48909@mail.telepac.pt


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 73
Ano 7, Outubro 1998

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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