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A Universidade: espécie rara, sempre em risco

Primeiro texto de uma série de seis

1. LEMBRETE

Convirá informar os leitores que só agora começem a ler este texto, que este é o primeiro de uma série de seis artigos subordinados ao mesmo título. Daí o algarismo romano (I). O artigo anterior era uma introdução geral onde se resumia as ideias principais a desenvolver (cf. "A Página", Setembro 1998). Terminava fazendo alusão a dois problemas que nos podem facultar uma inteligência mais apurada dos traços distintivos da instituição universitária e alegando que o seu interesse é tanto maior quanto não parece terem sido já tratados em conjunto, nas suas relações mútuas, pelo menos do modo como tenciono fazê-lo aqui.

Propus-me designar esses problemas, com intuitos mnemónicos, por problema de Humboldt e problema de Peirce. As razões que determinaram a escolha destes nomes não serão óbvias, mas tornar-se-ão aparentes à medida que prosseguirmos. Começarei pelo problema de Peirce. Antes de o formular do modo que creio ser mais relevante para o tema em discussão (o que ficará para o próximo artigo), farei, porém, um largo rodeio para o enquadrar devidamente.

2. O CREDO INEVITÁVEL

Empreguei o verbo crer no parágrafo anterior. É um verbo omnipresente nas nossas vidas (embora esse facto não encontre necessáriamente uma correspondência proporcional na nossa linguagem quotidiana). Não podemos
deixar de crer nisto ou naquilo, simplesmente para nos podermos conduzir nas mais diversas circunstâncias, das mais triviais às mais solenes ou transcendentes. Muitas das nossas crenças não chegam a atingir o limiar da consciência, muito menos o grau de autoconsciência que marca as nossas mais fortes convicções. Mas não são menos importantes do que elas, nem menos fortes.

Por exemplo, precisamos de acreditar (e em circuntâncias normais acreditamos piamente) que, ao despertar todas as manhãs, somos básicamente a mesma pessoa do que aquela que éramos na véspera, ao adormecer. Se o corrosivo da dúvida se infiltrasse nessa crença comezinha, a nossa autoconfiança desmoronar-se-ia num ápice. Se o mesmo corrosivo penetrasse mais fundo, a nossa sanidade mental sofreria fatalmente um rude golpe. Em suma, as nossas crenças mais fortes são precisamente aquelas que, em circunstâncias normais, não nos ocorre sequer questionar; aquelas de que não podemos de facto abdicar sem fazermos perigar a nossa integridade psíquica ou física - mediata ou imediatamente.

Não vale a pena dar exemplos: eles são legião. Assinalemos apenas que as crenças mais tenazes se deixam fácilmente formular sob a forma de credo inevitável: "creio no ar puro e na água potável sem os quais morreríamos de asfixia e de sede; creio no fogo que queima e aquece; creio ..."

O leitor poderá prosseguir (ou recomeçar de outra maneira) a litania a seu bel-prazer. Se o fizer procurando ser absolutamente honesto consigo próprio - isto é, procurando ater-se exclusivamente aquilo em que acredita piamente, sem um átomo de dúvida; aquilo em que deposita uma confiança inabalável para poder agir de boa mente - os resultados talvez o possam surpreender.


3. DO CREDO INEVITÁVEL À LIBERDADE DE ACREDITAR

Há, contudo, muitos e variados domínios em que temos a liberdade de acreditar. São os domínios em que surgem opções concebíveis que o nosso intelecto individual tem a capacidade de vislumbrar de modo mais ou menos nítido, mas que não tem, só por si, os meios de resolver. Reconhecemos fácilmente muitos desses domínios, mesmo sem treino especial. São aqueles em que a dúvida nos assalta inopinadamente, repetidamente, frequentemente, insidiosamente. A dúvida causa-nos um estado de insatisfação ou até de irritação, que só conseguimos apaziguar através de uma luta interna para a superar e atingir, se possível, o estado de credo inevitável. Com a dúvida começa a luta interna, que só cessa (pelo menos provisóriamente) quando a conseguimos substituir por uma crença nascida da sua superação.

Não há um nome único e verdadeiramente adequado para designar essa luta para superar a dúvida, nem ela se resolve sempre do mesmo modo. Mas em muitos casos (sujeitos a qualificações suplementares cujo exame aqui nos permitimos dispensar), podemos dar-lhe o nome de ciência ou (melhor ainda) investigação científica. Daqui se infere imediatamente duas coisas: (i) que o único objecto da investigação científica é a superação da dúvida, (ii) que a investigação cientifica é um método especial de fixação da crença, de resolução da opinião em matérias passíveis de gerar crenças conflituais.

Estas duas proposições são muito importantes. Por um lado, elas permitem-nos compreender a filiação secreta entre a ciência e a liberdade de acreditar. Por outro lado, elas colocam-nos na pista certa para atacarmos, em momento mais oportuno, as duas questões fundamentais às quais me propus responder, a saber: como explicar que uma ideia tão melindrosa como a de universidade tenha conseguido implantar-se institucionalmente nalguns lugares do planeta ? Que tipo de problemas pode a universidade resolver que outras instituições sociais não são capazes de resolver (ou, pelo menos, que não são capazes de resolver tão bem quanto ela) ?

Mas não nos antecipemos demasiado. Antes de mais, convem esclarecer que a ciência não é - longe disso- o único método de fixação da crença em muitos domínios em que temos a liberdade de acreditar. É apenas (e tanto basta) o mais recente, o mais exigente e o mais produtivo de todos eles. Mas quais sejam esses outros métodos concorrentes e que méritos e deméritos lhes assistem em relação ao método de investigação científica é um assunto que terá de ficar para o próximo artigo. Por hoje, esgotou-se o espaço que nos é concedido.

José Manuel Catarino Soares


  
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Edição:

N.º 73
Ano 7, Outubro 1998

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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