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Oportunidades perdidas

No número anterior, retomei a problemática da formação contínua. Quero concluí-la com uma referência à década de setenta. Creio que se justifica o exercício, dado que, frequentemente, esquecemos o essencial, ignoramos uma tradição que urge evocar e reflectir.
Porque não basta reflectir criticamente a prática, porque é preciso transformá-la, em meados da década de 70, grupos de professores (círculos de estudo?) concretizavam projectos educativos, a 'fase de escolaridade', o trabalho em 'Área-Aberta', numa formação marginal às 'reciclagens' que lhes foram impostas. E, talvez como corolário da ousadia de levarem a sério as propostas inovadoras que o ministério lhes oferecia, envolveram-se em frequentes conflitos com as hierarquias. Que oportunidades eram essas? Recordêmo-las aos mais esquecidos e aos mais novos no exercício da profissão.
Entre os programas de formação expressamente concebidos para professores do 1º Ciclo, no decurso da década de setenta, contam-se:
a tentativa, através do Dec-Lei 476/A/74, de 24 de Setembro, da instituição de 'uma secção pedagógica em cada comissão concelhia ou de zona';
o envio às escolas dos 'Cadernos de Documentação do Professor' efectuado pela DGES/DSPRI, no ano de 1976;
a exploração de 'Textos de Apoio', acompanhados de emissões de TV e Rádio, em 1977;
a criação dos 'Centros de Documentação Pedagógica', no decurso do ano lectivo de 1978/79.
Todos têm em comum uma característica: foram subitamente extintos, sem que se conheça qualquer avaliação dos seus efeitos.
Em 1980, é consagrado na introdução aos 'novos programas' um conjunto de princípios gerais orientadores do processo de ensino-aprendizagem, sem que, entretanto, algo tenha sido realizado, ao nível da avaliação dos programas de formação contínua de professores. Afirma-se que para viabilizar tais princípios, 'as orientações que, em seguida, se enunciam devem ser operacionalizadas em actividades a organizar na escola'. Como esperar que milhares de professores alheados desta formação oferecida sem obrigação de créditos viessem a operacionalizar as míticas orientações?
Decorridos vinte anos, em 1998, muitos professores continuam a formular pedidos de formação cujos conteúdos integravam os então chamados 'Cadernos de Documentação' e os 'Textos de Apoio'. Entretanto, alguém se lembrou de juntar esses cadernos e textos de apoio, de lhes dar a forma de curso à distância e promover o respectivo marketing. Êxito assegurado! As remessas (das mesmas folhas de 1975, mas com outra apresentação) chegam às escolas, enviadas por empresas de formação contínua, agora sujeitas a pagamento (até com direito a promoções e brindes...), sem passagem pela Direcção ou Delegação Escolar, mas com o mesmo destino: o armário, onde se reunem às folhas sobreviventes dos anos setenta.
Nos encontros de formação que, actualmente, acompanho, atrevo-me a uma incorrer numa maldade, quando sinto que é possível fazê-la sem que interpretem mal a intenção. Exponho um acetato com as seguintes citações:
'As modalidades organizativas (do trabalho escolar) devem ser diversificadas;
combater-se-á a tendência para um ensino meramente livresco;
(deve educar-se) na dupla perspectiva da educação do indivíduo e do cidadão(...)';
Depois, pergunto aos colegas quais dos princípios enunciados no acetato conseguiram, efectivamente, concretizar nas suas escolas. São raras as respostas afirmativas. Segue-se, quase sempre, um silêncio cúmplice. Então, eu peço aos colegas que façam uma estimativa da data da publicação do normativo de onde extraí estas citações. Invariavelmente, referem 1991, 1990 (o ano mais recuado foi o de 1987...), quando a data do despacho da DGEB/ME é 6 de Setembro de 1975, ano da introdução do sistema de fases no ensino primário.
Tal como em outras oportunidades perdidas, a formação para a prática do sistema de fase de escolaridade não inquietou a esmagadora maioria dos professores do primário. O currículo de formação inicial desses professores (a quase totalidade formada nas escolas do Magistério antes de 1974) não incluía, por exemplo, rudimentos de Psicologia Genética, de Sociologia da Educação, de metodologias activas, ou da prática de investigação em educação. A individualização, a organização do trabalho escolar tendo por centro os alunos, a avaliação que fosse auto-reguladora dos processos de ensino-aprendizagem, a interdisciplinaridade, eram somente componentes de um discurso pedagógico idealizado, que alguns movimentos se esforçavam por operacionalizar.
As acções de formação à distância organizadas pela DGEB foram complementadas, já em plena reciclagem para os Novos Programas (de 1980), com acções de formação presencial 'essencialmente a cargo da acção conjunta das Escolas do Magistério e dos Serviços de Inspecção do Ensino Primário'. Os Textos de Apoio davam a conhecer como essa acção directa era esquematizada: '(...A DSPRI, através do Serviço de Acção Pedagógica, trabalha trimestralmente com responsáveis dos Serviços de Inspecção e das Escolas do Magistério Primário para com eles discutir as linhas de orientação e organização'.
Em cada área de influência das escolas do magistério, estas planificavam as acções com os inspectores. Chegou-se a sugerir, timidamente, a transferência da monitorização para professores-animadores pedagógicos (entretanto eleitos). Mas estes eram uma massa crítica difícil de controlar e apenas se poderia encarar a hipótese do seu concurso, 'caso legislação adequada os venha firmar'. Tal legislação nunca seria publicada. Entregue a monitorização das acções a inspectores e a professores das escolas do magistério, o que poderia esperar-se? Felizmente que os recursos humanos dessas instituições eram limitados, senão os danos seriam ainda maiores do que foram. A incapacidade de resposta é confessada para justificar que 'por uma questão de eficácia, se admitia que as Escolas do Magistério poderão optar por planos experimentais reduzidos, não abrangendo necessariamente toda a população de professores da sua área de influência'.
Para se desenvolver um programa de formação contínua de professores com vista à compreensão dos determinantes do sistema de fases de escolaridade e da consequente transformação na organização da escola e das práticas ao nível da sala-de-aula e equipa de professores, seria preciso que, nos domínios psicológico, científico, académico, ou prático, os formadores fossem competentes. Não foi o caso. Os conflitos verificados entre animadores e inspectores, ou entre professores do Magistério e os professores-formandos eram frequentes. Não apagaram os efeitos de 'resistência à mudança' provocados na grande maioria dos professores passados pela formação. Mas deram origem a que, em 1980/81, o programa fosse extinto.
Os textos de apoio à formação à distância admitiam que, 'em relação aos professores, pretendeu-se (apenas) sensibilizá-los a aderir a uma Escola Activa'. Já os professores das escolas do magistério, que de uma prática inovadora no primário conheciam (e mal) o que os livros diziam, tinham maiores pretensões. E decalcavam elencos disciplinares da formação inicial em acções de formação contínua que tomavam o professor-formando como destinatário amorfo de saberes compendiados. Ao que parece, o estilo criou raízes, deixou herdeiros.
'Os professores do ensino primário em reciclagem sabem muito bem dizer a este ou àquele formador : 'mas o que é que você sabe disso se nunca o fez?' Foi o que sucedeu nos grupos que já traziam para essas reciclagens um capital de formação em grupo (círculo de estudo?). Nos locais onde a auto-organização dos professores substituiu a improvisação e a mediocridade, foram extintas as equipas e dispersos os animadores que haviam ousado fazer uma outra formação.
A consciência das necessidades e as reivindicações então expressas provam uma vitalidade que nunca beneficiou de condições institucionais favoráveis ao seu reconhecimento. Mas o que ficará da formação instituída, o que restará dos actuais centros de formação, daqui a outros vinte anos? Concluiremos, então, ter sido mais uma oportunidade perdida?

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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