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Cultura e Natureza. Tempo e Espaço

Quando o sol se vai, a lua surge. Quando a lua se vai, o sol surge. O sol e a lua se alternam. O sol e a luz se alternam, e assim nasce a luz. Quando o frio se vai, surge o calor. Quando o sol se vai, surge o frio. O frio e o calor se alternam e assim o ano se completa. O passado se contrai. O futuro se expande ( I Ching).

Margareth Mead uma antropóloga americana, afirmou que a Cultura é uma lente através da qual o homem enxerga a realidade. Com isto ela quiz dizer que há uma multiplicidade de formas de ver o mundo, dependendo da maneira como se foi ensinado a vê-lo e que isto não depende da cor da pele de uma pessoa, do lugar onde ela nasceu ou do clima onde vive.
Vários autores, entre eles Levi-Strauss, nos ensinaram que o conceito de raça é completamente ultrapassado . A moderna genética recentemente mostrou que o patrimônio genético da humanidade é apenas um; isso significa que todos os homens, estejam onde estiverem e independentemente da aparência ou da cor de sua pele, são todos descendentes de um mesmo ancestral. Ou seja, somos todos parentes uns dos outros, todos viemos de um mesmo homem; esta constatação elimina a possibilidade dos hominídeos serem provenientes de 'galhos' distintos durante a evolução biológica do ser humano e também elimina a possibilidade de existirem várias raças, mesmo que os biotipos ( ou a aparência externa seja distinta, como por exemplo a cor da pele, cor e formato dos olhos e assim por diante).
Uma vez 'assentadas' estas informações surge uma pergunta: mas porque há tanta diferença na humanidade, porque há tanta variação de costumes, línguas, crenças, alimentação, vestuário, gostos, maneiras de pensar e sentir tão diferenciadas? Esta multiplicidade que poderíamos chamar de multiplicidade cultural é proveniente da criatividade humana, que encontra soluções muito distintas para problemas bastante comuns à humanidade, tais como os de sobrevivência, como perceber a natureza, o tempo e o espaço.
A maneira como se percebe a natureza e se lhe atribui significados é também cultural. Dizendo de uma outra maneira, a natureza apenas existe a partir do olhar humano que olha para ela, classifica as espécies existentes, define quais são úteis ou não. Os estudos em diferentes sociedades demonstram que de um potencial de utilização da natureza, apenas uma porcentagem é apropriada para o consumo humano. Um exemplo claro é o fato de que chineses comem carne de cachorro, o que para nós, brasileiros, é claramente repugnante. Por outro lado, os hindus consideram a vaca como um animal sagrado, enquanto nos Estados Unidos e no Brasil, ter um bom bife na mesa é sinônimo de boa alimentação e mesmo de poder aquisitivo. Enquanto isso, os Enenauê-nauê que moram em Mato Grosso, têm repulsa por mamíferos e claramente preferem os peixes como prato principal. Os exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito, mas o que vale reter é que as sociedades humanas e as culturas são muito variadas e apresentam uma riqueza enorme de arranjos e soluções para a vida.

Para Geertz, também antropólogo, a cultura é uma teia de significados. O olhar humano, principalmente o olhar que se aprende através da lente da cultura percebe significados na vida a sua volta e estes significados sempre são distintos de uma para outra sociedade. Tomando o tema da observação da natureza e da atribuição de significados, pode-se pensar no poder que algumas religiões atribuem às plantas: há um conceito de plantas fortes, de plantas protetoras, de plantas que atraem entidades ou então repelem maus fluidos, como é o caso da arruda, comigo- ninguém- pode, alecrim, etc. Um português, por outro lado, pode utilizar o alecrim como tempero e nem pensar nele como uma planta de poder.
Da mesma maneira pode-se pensar que o tempo e o espaço também são percebidos de maneira distinta por diferentes culturas. Para Durkheim (1989) espaço e tempo apenas existem a partir das representações sociais, ou das categorias criadas socialmente, o que permite que estes elementos passem a ter uma significação compartilhada por uma sociedade. Um mesmo espaço no Pantanal, por exemplo, pode ser percebido e utilizado de maneira diferenciada por uma população tradicional, por um grupo de pescadores, por fazendeiros e por um grupo indígena pantaneiro. Da mesma maneira o tempo é vivenciado de maneiras particulares por diferentes culturas; um pescador do rio Cuiabá deve observar o rio, o movimento das águas, a fase da lua, as estações, um agricultor deve saber quando plantar e também conhecer as informações que o pescador conhece. Alguém que vive no campo deve saber observar os sinais provenientes da natureza, do comportamento dos animais, do céu, das estrelas, da lua, enfim desenvolver um conhecimento extremamente refinado de seu meio para que possa planejar melhor suas atividades e tirar o maior proveito possível de suas atividades. Um morador da cidade, por outro lado, pode contentar-se em localizar-se no tempo através do relógio e do calendário de seu país.
Evans-Pritchard, um antropólogo que estudou um povo africano, chamado Nuer, percebeu que eles têm duas maneiras tempo de observar o tempo, as quais ele chamou de tempo ecológico e tempo estrutural. O tempo ecológico é cíclico, com a duração de um ano e por ser cíclico, imprime um ritmo às aldeias e ainda,
... os aspectos pelos quais as estações são definidas com maior clareza são aqueles que controlam os movimentos das pessoas: água, vegetação, movimento dos peixes, etc., sendo as necessidades do gado e as variações no suprimento de alimentos que traduzem principalmente o ritmo ecológico para o ritmo social do ano, e o contraste entre o modo de vida no auge das chuvas e no auge da seca que fornece os pólos conceituais na contagem do tempo (1978:109).

Aspectos semelhantes motivam a percepção do tempo entre os mimoseanos, uma população do Pantanal, onde as polaridades seca e cheia são entremeadas por duas estações de transição - a vazante que leva à seca e a enchente que leva à cheia. O que fortemente marca as estações e a passagem do tempo, em Mimoso, são os elementos que se relacionam, principalmente, com os cuidados relacionados ao gado e, na época de plena cheia, a impossibilidade de se movimentar e a perda de contato com Cuiabá, através da estrada, ou mesmo de um isolamento bastante grande entre eles mesmos. Mas as passagens normalmente não ocorrem de uma maneira brusca em função das estações intermediárias.
Em geral, tempo e espaço estão relacionados. Pensa-se num tempo sempre em relação ao espaço e vice-versa. As categorias espaciais observadas pelos mimoseanos, o firme, o pantanal, o brejo, o largo, o cercado, o morro, a fraldinha, aterro, baías, corixo, rio, riacho, são categorias que descrevem, informam a respeito do uso do espaço. As leituras feitas sobre o espaço e sobre o tempo dão aos mimoseanos uma característica particular, uma vez que estas são realizadas em um ambiente que é temporariamente alagável e temporariamente seco. A paisagem passa por modificações sucessivas que estão condicionadas à presença ou ausência da água das enchentes e os espaços passam por importantes modificações condicionadas aos ciclos ecológicos, tais como a oferta e disponibilidade de recursos e /ou sua utilização, presença de animais migratórios e de pastagens.
O espaço percebido pelos mimoseanos, desta maneira, pressupõe um movimento provocado pela frequência das chuvas e pelo alagamento dos rios Cuiabá e pelas baías de Xacororé e de Mariana. A água, ou as pastagens ora estão ampliadas, ora retraídas - a segunda em função do movimento da primeira. Assim, a paisagem em Mimoso é incessantemente modificável, nunca é a mesma; o aspecto da vegetação e da cobertura vegetal do morro também obedece a este ritmo da temporalidade e da ciclidade.


Joana Aparecida Fernandes Silva

Prof. Depto de Antropologia
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil.
e-mail :maia@dinet.com.br.
endereço: Rua 50, n. 656
Boa Esperança
78068-450- Cuiabá, Mt


  
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Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

Joana Aparecida Fernandes Silva
Prof. Dra Departamento de Antropologia/UFMT, Brasil
Joana Aparecida Fernandes Silva
Prof. Dra Departamento de Antropologia/UFMT, Brasil

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