Página  >  Edições  >  N.º 69  >  Almeida Faria ou A PAIXÃO posta em teatro

Almeida Faria ou A PAIXÃO posta em teatro

Quando em 1966 Almeida Faria publicou A Paixão, fomos um dos seus leitores mais entusiastas, não só porque esse romance confirmava as verdadeiras qualidades evidenciadas em Rumor Branco, mas sobretudo por ser um romance de clara maturidade e a afirmação do talento de um dos escritores que, no começo dos anos sessenta, soube abrir novos caminhos estéticos e ideológicos à moderna prosa ficcional portuguesa.
Reeditado por várias vezes neste espaço de trinta anos, A Paixão foi agora posta em teatro numa adaptação (ou nova forma de escrita) feita pelo autor de Lusitânia, consciente dos riscos que aceitou e sabendo que todo o romance é narração, enquanto o teatro é por excelência uma forma de acção. Mas a verdade é que já no romance o autor tinha batido em retirada e a sua presença ao longo da acção narrativa quase se não fazia sentir, por ser uma história de tempo limitado (manhã, tarde e noite de uma Sexta-Feira Santa), fechada em contornos psicológicos muito definidos, ou como se confessa, 'infiltrei-me nas visões e interrogações de uma familiar durante uma simbólica sexta-feira santa'.E assim as personagens de Vozes da Paixão, nesta versão dramatúrgica do romance, ganham uma e mesma dimensão humana porque já no romance pareciam de facto emergir das tábuas de um palco, faziam a sua apresentação, evidenciavam os sinais físicos mais marcantes e contavam pormenores da sua própria história. E por isso o leitor lhe detecta todos os traços e movimentos, sabe do que fazem (profissões, parentesco e idades), identifica-as inteiramente e não mais as pode esquecer.
Trata-se na verdade de uma história de carácter bíblico, ou seja, é mesmo uma forma de evocar e contar o próprio Evangelho numa perspectiva identificada com a visão que o autor revela do mundo que o envolve: um mundo de tons claros e escuros, amarelos e vermelhos, claramente situado num Alentejo vivo e relevante de meados deste século, humaníssimo, cheio de 'árvores com sedes e estigmas'. Mas é também uma história de labirintos circulares e horizontes estreitos, onde a descoberta de cada novo labirinto é um acto de lucidez por parte de um escritor que sabe o que quer das personagens que coloca em movimento e agora se exprimem em verso livre nesta 'dramatis personae'. Mas, sendo ainda essa história de um tempo dessacralizado, onde os homens perdem e ganham nova esperança em cada dia que vivem, onde sentem o que vêem e pressentem o que há-de nascer ou acontecer, é também a história da celebração do homem que acredita no futuro da sua humanidade, apesar dos escolhos que a cada instante se atravessam no caminho. Julgamos, pois, poder dizer que se trata da história de um mundo concentracionário, fechado numa dimensão de tempo e de espaço em que a própria actividade ou permanência humana procura os limites da sua projecção.
Sabemos que existe sempre lugar para a reflectida meditação, para a busca de um sentido que deve ser dado a todas as coisas da vida, isto é, há o tempo do sagrado e do profano, das pessoas e dos sinais que trazem em si o eco das origens do mundo e da vida, como símbolo ainda do pecado original. Mas há também um tempo de amor e de verdade, de ódio e de mentira, de aceitação e de renúncia, de espanto e de alegria, e nessa nítida contraposição o homem e o seu verdadeiro destino aparecem por inteiro nas páginas de A Paixão como nas palavras ditas, proclamadas ou afirmadas mesmo nesta versão teatral que há pouco tempo foi representada no Centro Cultural de Belém.
Através das personagens presentes no romance, existe um clã familiar em que assenta toda a trama do romance e também desta recente dramaturgia (Francisco e Marina, lavradores do Alentejo, os seus quatro filhos André, Arminda, João Carlos e Tiago, e Piedade, a cozinheira da casa) que serve para desvendar o mistério da paixão que é revelado (ou evocado) com uma quase estranha fidelidade aos textos bíblicos, embora ajustados a um tempo e espaço muito mais actuais, para que o leitor não deixe de ajuizar sobre as personagens recriadas nas páginas do romance e faz também entrar em cena diante dos olhos do espectador.
Portanto, não causa qualquer espanto que se pense imediatamente em certos planos do Acto da Primavera, de Manuel de Oliveira, ou nas figuras rudes e expressivas do belíssimo filme de Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus, porque Almeida Faria nos conta, afinal, a mesma história, limitada numa dimensão mais reduzida e controlada pelos próprios valores religiosos e ideológicos, mas acaba por reinventar uma dimensão diferente para o destino do homem ainda e sempre preso à árvore da vida. Os símbolos são os mesmos, é idêntica a presença do homem perante os outros homens e à face da Terra e daí que esta releitura de As Vozes da Paixão nos consinta entender o que está para lá dessa porta aberta à iluminação do mistério das Trevas, da 'noite velhíssima e sem tempo, silenciosa, solitária e caduca como os deuses, tremenda de lembranças que não voltam'.
Reinventando todo o mistério da Sexta-Feira Santa em termos de uma flagrante actualidade, perfeitamente enraizado na ambiguidade religiosa do mundo contemporâneo, Almeida Faria criou (e agora recriou) uma obra de densidade expressiva fora do comum na nossa moderna literatura. E, pela sua acentuada atmosfera poética ('Não se pode dizer com propriedade que toda a grande arte seja realista; o que se pode dizer é que toda a grande arte é poética', dizia-me Almeida Faria numa entrevista que lhe fiz na altura da 1ª. ed. de A Paixão, publicada no Suplemento Literário do 'Diário de Lisboa', 21.Abril.1966), todo o desenrolar da história, doseada num ritmo narrativo que se revela bem dominado, nos tons musicais que surgem em palavras de efeito surpreendente através das metáforas ou de um certo automatismo da própria escrita presente nas páginas do seu romance, se poetiza numa prosa de tons melodiosos que muito entusiasma o seu leitor. Por último, devemos acentuar que nada dessa carga poética se perde nesta sua adaptação teatral, porque esta se afirma sobretudo como forma de 'cantata não cantada, mas pensada à sombra tutelar de música de Bach'.

Serafim Ferreira.

ALMEIDA FARIA
VOZES DA PAIXÃO, teatro
Ed. Caminho / Lisboa. 1997.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 69
Ano 7, Junho 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo