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Beijinhos em rodapé

Editorial de Junho de 1997

Recebo, com frequência, cartas e faxes de mulheres, companheiras de vida e de trabalho, que terminam o texto com um beijo ou com beijinhos. Imaginem o que aconteceria se, mais tarde, fosse cobrar, segundo a minha interpretação, a promessa escrita. Com sorte diriam que o beijo ou que os beijinhos enviados por escrito eram só na face.
Nos períodos eleitorais, os partidos, para assumir o Poder, fartam-se de fazer promessas. Depois é o que se sabe. O povo e os que perderam exigem o cumprimento das promessas não cumpridas, muitas vezes sem se dar conta que as promessas das campanhas eleitorais não passam de beijos e beijinhos em rodapé. A intencionalidade dos emissores e dos receptores é sempre diferente. Há mesmo quem diga que é dessas diferenças que se faz a vida política.
Sempre entendi que a 'paixão pela educação', de António Guterres, não passava de uma promessa de rodapé. As verdadeiras prioridades do Governo, particularmente as exigências impostas pelo objectivo da moeda única, não deixavam dúvida quanto ao que iria acontecer no campo educativo.
Neste contexto, importante será desmontar e mostrar à opinião pública as diferentes interpretações que se podem fazer das várias promessas. E é fácil demonstrar que a nossa 'paixão pela educação' é bem diferente da 'paixão' de Guterres ou do actual Ministro da Educação. A nossa paixão exige corpo, suor, imaginação, criatividade e não apenas palavras e contemplação. Exige transformação da realidade. Capacidade de ter o que não temos e de ter o que o que o país e o povo precisam. E o povo não precisa apenas de promessas simpáticas contidas em nota de rodapé.
Na actual situação, convém ter em conta que há sempre uma mão (a defensora do orçamento) pronta a tirar alguma coisa que tenhamos recebido da outra. Parece ser necessário encontrar alguns critérios que nos ajudem a perceber o sentido do que nos é prometido. Quanto custa o que estão a prometer? Quem paga a conta? Quem são os beneficiados? Se a conta for pequena e for o povo a pagar é possível que a promessa se concretize. Se a conta for grande ou pequena, se for o povo a pagar e se os beneficiados forem os donos do capital concretiza-se de certeza. Se a conta, pequena ou grande, for para ser paga pelo capital, é promessa adiada para depois do ano 2.000. E por aí fora.
Como se sabe, todos os partidos se preocupam com os reformados. Com os pensionistas como outros dizem. Ou com os aposentados como se diz relativamente aos professores. É que o peso eleitoral deste grupo de cidadãos é enorme e pode ser decisivo na resolução das contendas eleitorais. Não é pois de estranhar que, durante as campanhas eleitorais, sejam eles quem recebe mais 'cartas' ou 'faxes' com muitos beijos e beijinhos em rodapé. Por estar perto do limite da vida, por cansaço da vida, ou porque as reformas, de tão baixas, são ofensivas, uma grande maioria acredita que os beijos e beijinhos são mesmo a sério. E votam.
Os professores aposentados têm vindo a desenvolver um enorme esforço, com o apoio dos sindicatos da FENPROF, no sentido de lhes ser feita justiça. Como se sabe, as mudanças introduzidas na carreira docente, a sua aplicação faseada em vários anos, o sistema injusto de não contagem de todo o tempo de serviço, criou enormes desigualdades entre estes professores consoante o ano em que passaram à aposentação. Casos há em que as diferenças dos valores das pensões são de um terço em relação a outros. Isto sem contar com o abismo que se foi e vai criando entre o valor da reforma e o salário de quem está no activo. Todos estes professores e professoras, para além da sua dedicação ao ensino, em condições bem difíceis, descontaram forte e pontualmente, os diferentes encargos impostos por diferentes governos. Esperavam certamente que pelo menos na aposentação lhes reconhecessem minimamente o mérito, a dedicação e o desgaste do exercício de uma profissão bem difícil. Puro engano.
Nos últimos anos, um vasto grupo de professores aposentados reuniu-se por diversas vezes com entidades oficiais, entre as quais a Comissão de Educação e os Grupos Parlamentares da Assembleia da República. Uma das suas últimas iniciativas consistiu na deslocação de uma delegação de cento e cinquenta professores à Assembleia da República onde entregaram à Presidência da Assembleia um dossier completo sobre a sua situação bem como uma exposição/abaixo-assinado com 5.192 assinaturas. Na ocasião reuniram-se com representantes de todos os grupos parlamentares. De todos receberam palavras de compreensão e promessas. Mas nenhuma acção.
Na noite em que escrevo, e foi essa a motivação principal deste editorial, tive notícia de que a Assembleia da República discutiu e votou uma Proposta de Lei, apresentada pelo PCP, que poderia finalmente fazer justiça a estes professores. Fica registado que a Proposta de Lei foi rejeitada com os votos contra do Partido Socialista (PS), a abstenção dos Partidos Social Democrata (PSD) e Partido Popular (PP) e os votos a favor do Partido Comunista Português (PCP). Muitos dos nossos colegas, várias vezes recebidos pelas entidades que agora votaram, perceberam dolorosamente que as manifestações de compreensão e as promessas antigas não passavam de beijinhos em rodapé. Não me parece, contudo, que tal desfecho se deva tomar como caso julgado. A política faz-se destes enganos e desenganos. E faz-se sobretudo da capacidade de persistir na defesa da justiça e da transformação da realidade. E faz-se também da nossa capacidade de usar, desculpem a linguagem militarista, as armas adequadas a cada situação. Duas delas são o voto e a capacidade de mostrar à opinião pública a razão que nos assiste.
Para os colegas aposentados vai um abraço, vários beijos e muitos beijinhos. Mas não em nota de rodapé. Com a solidariedade de quem persiste em partilhar o gosto pela educação e o ensino.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 69
Ano 7, Junho 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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