Ó Pai, conheces o António Torrado? Foi com esta pergunta ao jantar que o João começou por nos surpreender nesse dia. E como não deve ter obtido uma resposta imediata, insistiu: - Conheces ? - Conheço. E tu ? - Conhecemos hoje. A Ana Maria leu uma história dele. Não nos lembramos do modo como a conversa prosseguiu. Sabemos apenas que ela se iniciou, porque, num pequeno jardim-de-infância de Gondomar, uma educadora permitiu que algumas crianças, com quatro anos de idade, tivessem aprendido a conhecer um escritor através da leitura de um dos seus livros. Notável trabalho este, num país resignado ao peso dos muitíssimo por cento daqueles que não foram capazes de evocar o nome de um único escritor português face às solicitações de uma sondagem encomendada por uma cadeia televisiva. Notável trabalho também, pelo exemplo que constitui para quem continua a não entender que os textos são apenas pretextos para nos encontrarmos, por vezes até para nos inquietarmos, com nós próprios e com os outros, contribuindo a seu modo para aprendermos a assumir uma presença curiosa e interessada face ao mundo em que vivemos. Notável trabalho, finalmente, porque realizado num jardim-de-infância público que, a exemplo de muitos outros jardins-de-infância públicos, consegue ir proporcionando respostas educativas de qualidade à força dos golpes de criatividade e do espírito de missão das educadoras que nele trabalham. É por isso, por estas e por outras razões, que não podemos deixar de considerar o João Guilherme como um menino privilegiado quando passa todos os dias o portão verde da escola, um privilegiado acidental, diga-se de passagem, que só o é porque alguém desistiu, deixando uma vaga em aberto que foi por ele preenchida. E se ele não tivesse entrado ? A sua vida seria certamente mais pobre, apesar de todo o amor e do carinho da Fernanda, dos inúmeros brinquedos que possui ou da enorme disponibilidade que o avós têm para o aturar. Se não fosse o jardim-de-infância como é que ele teria aprendido a alegria de ver todas as manhãs o Bruno, o Rafael, a Ana Catarina e o Rogério? Quem o espevitaria a explicar que no domingo só havia portistas no mundo? Quando é que viveria a sua primeira experiência democrática, ao definir com os colegas as regras a aplicar na sala? Quando é que aprenderia a partilhar os jogos e os vídeos que de vez em quando leva na mochila ? Quando é que se interessaria pelo nome daquele bicho que no Jardim Zoológico da Maia mais parecia um porco, embora fosse um javali ? O João é, portanto, um privilegiado, ao contrário de milhares de outras crianças que em Portugal ainda não tiveram a oportunidade de viver num jardim-de-infância experiências de vida tão significativas e desafiantes como aquelas que o nosso filho tem vindo a poder usufruir. Experiências estas que, por as considerarmos tão decisivas, nos obrigam a pensar até que ponto um modelo de intervenção educativa próximo daquele que temos vindo a abordar, não poderia constituir uma fonte de inspiração pedagógica para os contextos educativos dos níveis subsequentes. Possivelmente, evitar-se-ia trucidar os Lusíadas e a aprendizagem de coisas tão patetas como aquelas que um de nós encontrou num livro de iniciação à leitura, actualmente à venda no mercado, que se permite propôr frases tão inanarráveis como estas que se citam apenas para amostra: 'O leão Leote comeu a tulipa', 'O Jaime beija a jibóia'. Possivelmente, os miúdos passariam a conhecer o euro e a preparar-se para o fim do escudo, sem se esperar pela aprovação de programas que o exigissem ou pela edição de manuais escolares que o propusessem. Provavelmente a educação escolar adquiriria um outro sentido e talvez fosse possível ter esta conversa com a nossa filha mais velha que se encontra a frequentar o 9º ano: - Gostaste do texto que escrevi sobre Timor ? - perguntar-nos-ia a Tatiana. - É para a Área-Escola ? - inquiriria então um de nós. - Não, é para discutir na aula de História. Ariana Cosme Rui Trindade
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