Li as letras todas dos textos instalados na Praça Pública de 'A Página' de Abril acerca da Matemática, ou antes, da didáctica da disciplina curricular que lhe leva o nome. Os títulos, com sinais crochetando as expressões verbais aguçaram-me o interesse e o facto de a tal matéria começar a ser dado explicitamente espaço importante fez-me aquecer a alma. O que vai sair daqui? Está mesmo a ver-se que dá aulas de matemática! Interrogar-se-ão e exclamarão alguns dos leitores que padecem de saudável curiosidade. Sim, porque mais do que curiosidade (e agora falo eu) não há pretensão de estimular. O que vai sair, que seja menos do que o que vai ficar. Sim, sou professora de Matemática e procuro criar mais momentos de negociar do que de dar. As considerações tecidas e as relações causa-efeito apontadas, bem como as sugestões tomadas como exemplos, infelizmente têm a ver com a nossa realidade. Veja-se o lugar que Portugal ocupa na lista ordenada de países em que o critério assenta no nível de sucesso na disciplina; é assustadoramente mais breve enumerar os que estão abaixo do nosso país! Passo a transmitir algumas das reflexões que tenho feito. Se forem polémicas, que bom! Se forem lidas, valeu a pena! - A Matemática não é cultura geral, é uma ciência. E é uma ciência abstracta. No sentido e através da abstracção vai ter que ser descoberta. No entanto, não há dúvida de que em função das faixas etárias e da variável oportunidade contextual, a ligação ao quotidiano, por mais elementar que seja, é imperiosa, mas sempre na busca do rigor da interiorização. - O pensamento matemático não rege apenas os raciocínios frios. A não serem observadas a Lógica e as suas leis, que consistência poderá ter qualquer estrutura, qualquer poder, qualquer sociedade? E que bem sabemos da necessidade de cruzamentos dos pragmáticos(?) estudos estatísticos com os factores inerentes às condições específicas, nem sempre quantificáveis, das ocorrências em universos de pessoas! Muito mais há, mas muito mais não precisa ser chamado à conversa para demonstrar com teoremas, corolários e postulados que se as mentalidades são as peças fundamentais da sociedade inclusiva, a matemática é um motor importante para a interculturalidade. - A afinidade da linguagem dita corrente com a matemática é o mais estreita que possa imaginar-se. Se a asserção soar a abusiva, atente-se um pouco na disjunção, na conjunção, na condição, e logo, os símbolos e sinais do quadro negro saltam à memória. Quantos 'ou', 'e', 'se' aparecem desenhados? E os artigos? Os definidos traduzidos com '=', os indefinidos no singular escritos 'OE', os partitivos (uma incursão no Francês) codificados 'Ã'. Que jeito dá recorrer ao Inglês para se entender o conceito ordinal que está por trás do chamado cardinal, quando se diz, por exemplo, 25 de Abril, ou seja, vigésimo quinto dia do mês! Também a semântica, como suporte da memória, em casos como a mera distinção de numerador e denominador: a extensão/quantidade e o designado/qualidade. As interdependências e, rigorosamente, a definição de função. A aparente contradição entre verbalização escrita e oral (simbologia e leitura) desfaz-se quando é chamada a atenção para o processo mental. Muito ao de leve, lembra-se o caso de se dizer 'f de g de x' [ f (g(x) ) ] e de procurar em primeiro lugar a imagem por g e, a seguir, a nova imagem por f ; basta notar a analogia de procedimento quando se investiga a cor dos olhos da Ana e se procura a Ana, depois se vêem os olhos para, finalmente, se ter opinião sobre a cor. Linear? Será, mas ... ausente com frequência. - No documento de identidade, 'bicho de sete cabeças', fantasma, e outros apodos não são elementos de génese, mas sim resultantes da prática de todos nós, da responsabilidade de muitos de nós. E, para além do mais, nunca, por si, poderiam ser idênticos a matemática, até porque esta só reconhece como idêntico o que é perfeitamente sobreponível. No que respeita a obrigatória, claramente que sim; sem carácter compulsivo, mas tão somente por ser indispensável. O caminho para a aceitação e até desejo de obrigatoriedade traça-se em colectivo, sem dúvida com a participação dos diversos agentes intervenientes na formação global do indivíduo. Naturalmente que os professores são protagonistas no percurso. - O professor tem que ser cientificamente competente e só pode contagiar o gosto se ele próprio gostar. As vertentes de saber académico e saber didáctico-pedagógico só fazem sentido se exercidas de forma concertada, em postura de partilha, de maleabilidade intelectual, de consciência inter e multidisciplinar. É urgente que a formação inicial seja mais abrangente e que a formação continuada seja sistemática e mais eficaz. Não é apenas a dedicação de quem se quer profissional que resolve os graves problemas existentes no ensino/aprendizagem da Matemática. Há, certamente, que dar vida nova ao sistema, partindo da estrutura educativa nos planos nacional, regional e local e investindo na criação de condições que estimulem e proporcionem a concretização de projectos que, então, naturalmente surgirão. - Quanto às aplicações da Matemática, seria necessário situarmo-nos numa dimensão cósmica para que a percepção se aproximasse da sua, atrevo-me a dizer, omnipresença. Não é pecado citar exemplos do mundo mais acessível a todos, é importante fazê-lo. Mas redutor seria não mencionar a evolução do conhecimento nomeadamente em tudo o que contribui para a alteração da qualidade de vida a todos os níveis: a saúde, a produção, o trabalho, os transportes, as novas tecnologias, a conquista do espaço ... o sorriso de uma criança feliz. Sem preocupações de exaustão, mas com vontade de continuar, desta vez fico-me por aqui. Porventura a contra gosto, abro a pausa com um comentário amargo: A problematização das situações e as decorrentes aplicações concretas da Matemática também têm desvios e efeitos altamente perversos, premeditados e lesivos. Iracema Santos Clara Maio de 1998
|