Página  >  Edições  >  N.º 68  >  Formação e Trabalho

Formação e Trabalho

Ainda variações sobre o tema

No último número, questionámos as relações entre formação e trabalho no sentido de pôr em evidência que a forma tradicional de as equacionar traduzia uma visão essencialista da formação ao afirmar-se como subordinante da natureza do trabalho e, portanto, como desvalorizadora do seu potencial transformador. Considerámos que, por essa via, a formação não visava, apenas, a prescrição técnica das regras e normas a que devia obedecer o trabalho, mas visava igualmente o condicionamento dos comportamentos e das atitudes accionados pelos agentes do trabalho no exercício das respectivas tarefas. Ou se quisermos, em última análise, a determinação da teoria sobre a prática.
É o que empiricamente podemos constatar quando analisamos um modelo de formação orientado, por exemplo, segundo a designada 'pedagogia por objectivos'. Sendo, aparentemente, uma técnica que inculca a ideia de que a aprendizagem será tanto mais eficaz quanto mais segmentarize as tarefas no intuito de as tornar acessíveis aos alunos, idealmente reduzidos a unidades singulares, a pedagogia por objectivos faz do professor um programador centrado na análise das tarefas e nos comportamentos previsíveis, na ânsia de realizar uma homologia entre ambos. A teoria que lhe subjaz é a de que a prática é uma sequência de tarefas, regidas por objectivos, cuja relevância procede do facto de se apresentarem já estabelecidos. Ao professor cabe a função de os tornar executáveis. Esta exterioridade e esta anterioridade podem ser iludidas através da 'participação' do professor na sua operacionalização. Na verdade, porém, o professor ao subordinar, aparentemente, a sua actividade a preocupações técnicas, está a regular a sua prática por critérios que são, simultaneamente, de natureza moral e social, já que o referente de avaliação que os organiza procura a conformidade entre objectivos e comportamentos. A conformidade supõe, portanto, a conformação ou a funcionalidade.
A consagrada anterioridade da formação relativamente às práticas de trabalho tem, evidentemente, a ver com a divisão social do trabalho, mas no campo específico da profissão docente ela desempenha um papel particularmente significativo na medida em que contribui activamente para naturalizar essa divisão sob a forma de definição do mérito individual, conceito operatório indispensável ao próprio funcionamento da escola e, de forma indirecta, do funcionamento global da sociedade. É, aliás, por aí que a mesma anterioridade da formação se legitima, já que, mais do que formação, enquanto qualificação, lhe está adstrita, como função determinante, a definição da natureza do trabalho futuro e de distribuição de oportunidades sociais, com o que se oculta o mecanismo real, de natureza política, que preside àquela divisão social do trabalho.
É por isso que a autonomização da formação relativamente ao mundo do trabalho, a sua anterioridade temporal e a sua pretensão ao domínio antecipado das práticas é, essencialmente, determinada por relações de poder, razão por que a relação de formação é sempre uma relação hierárquica, a qual se traduz, nas suas expressões concretas, em quotas individualmente atribuídas de mérito ou demérito, cujo valor prático é o de tornar funcional o trabalho individual (ou a subjectividade de quem trabalha) com a objectividade do sistema. Daí que todo o sistema de formação tenha de ser definido, tendencialmente, por uma filosofia do défice de formação, de necessidades de formação atribuíveis aos formandos e por um simétrico rasuramento das suas competências e qualificações práticas, como se a experiência profissional fosse um acúmulo de desaprendizagens.
Neste sentido, a formação é uma desautorização de quem trabalha, na acepção forte do termo, isto é, como denegação do contributo do trabalho para a identidade pessoal e profissional, problema que se exprime, contraditoriamente, pela corrida individual à formação em busca dum suplemento exterior de identidade. Daí que repensar as relações da formação e do trabalho constitua, verdadeiramente, um acto de formação.

Manuel Matos


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo