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O Regresso dos Exames Nacionais

mais um buraco no queijo gruyèr

A equipa responsável pelo ME levou à Assembleia da República, no passado dia 26 de Março, um 'pacote de reformas estruturais' que inclui o regresso aos exames nacionais, no fim de cada um dos ciclos da escolaridade básica ñ 4º, 6º e 9º anos.
Em mais um 'pacote' de 'novas' reformas para educação, esta é, sem dúvida, uma medida de impacto mediático, mas que está longe de merecer o epíteto de 'estrutural'.
Desta vez, nem o carácter 'inovador' colhe; apenas prossegue a cosmética terminológica: agora os exames são chamados 'provas de aferição nacional'. E quer se queira quer não, trazem-nos de imediato à memória práticas de um tempo que se julgava (ultra)passado. Ainda que se queira mostrar que não estamos num processo de regresso ao passado esta é uma medida que não se livra do cheiro a bafio.
E a emenda é pior que o soneto: em vez de exames a todas as disciplinas como antigamente eles circunscrevem-se agora ao Português e à Matemática e não contam para a classificação dos alunos. Aí estão as marcas do tempo presente: defende-se a excelência e baixa-se a fasquia da qualidade, advoga-se a exigência e institucionaliza-se o laxismo.

As falhas do sistema

Não defendo, de modo algum, a manutenção do actual estado de coisas. A existência de exames, como hoje se verifica, apenas no términus da escolaridade de 12 anos é uma perfeita anacronia, que só se entende face à política do 'pêndulo' educativo: num passado enxameado de exames puxou-se a corda no sentido oposto. Sou dos que partilham a ideia de que o nosso sistema falha quando confronta os estudantes com um só exame e no momento em que estão de saída.
Não prepara os que prosseguem estudos no ensino superior, onde a realidade da maratona anual de exames, a todas as disciplinas, os acompanha ao longo do curso. E não prepara tão pouco os que optam pelo emprego, onde as provas de selecção (escritas e/ou orais), num mercado saturado de candidatos e fortemente concorrencial, substituem cada vez mais a simples apresentação do diploma escolar.
E aqui reside uma outra 'fraude' do sistema: ainda que privilegiando a oralidade (consequência lógica do primado da participação) acaba-se por avaliar o escrito. Ou seja, a classificação final dos alunos depende dos resultados obtidos na principal (se não única) modalidade de avaliação ñ os testes e os exames. A escola dos nossos dias afastou praticamente a avaliação oral formal: as 'orais' e as 'chamadas' foram arrumados no armário das velharias pedagógicas. E assim, um aluno com grandes dificuldades na expressão oral (podendo até sofrer de agorafobia) desde que estude e revele uma boa performance ao nível da escrita passa incólume em todo o seu percurso escolar. Na classe, entra mudo e sai calado. As famílias vão sendo notificadas de que 'o aluno precisa de participar mais nas aulas' (frase ritual das 'fichas' de fim de período). Mas tendo boas notas, naturalmente, transita de ano. E o sucesso escolar faz esquecer todas as impreparações da formação, designadamente essa incapacidade para enfrentar a vida social. O aluno não sente grande necessidade de alterar o seu comportamento e a escola não considera que se esteja perante uma situação problema.

Alunos como cobaias do sistema

Se há vontade para avaliar, de forma regular e séria, o sistema educativo ñ serviços centrais, escolas, professores e alunos ñ matérias não faltam, pois os problemas na educação são como os buracos num queijo gruyère. Dou apenas um exemplo por onde seria prioritário começar: as chamadas 'inovações' introduzidas com a Reforma de 1986, nomeadamente a área-escola. Porque a outra inovação, a do Desenvolvimento Pessoal e Social, dez anos volvidos, continua paralisada por estudos e polémicas. Tudo tem um tempo: o do debate, o da concertação e o da decisão. Porque se teima em adiar a decisão quando os problemas são evidentes e não param de se avolumar? Como enfrentar, por exemplo, o fenómeno da 'incivilidade' juvenil com a ausência curricular de qualquer intervenção de educação cívica?
Já no que respeita à área-escola seria importante saber se estamos perante uma área de projectos de professores ou de alunos; se é uma área de concretização de saberes ou um show off de verdadeira animação cultural e performance teatral; se nas escola onde funciona é um prazer ou uma estafa para docentes, numa concorrência desenfreada entre turmas e professores; se a revolta (surda) é latente mesmo naqueles estabelecimentos onde os líderes teimam em mostrar que esta é, de facto, a grande inovação da Reforma. Mas principalmente, em quantos estabelecimentos a área-escola funciona de facto e quanto tempo ela preenche nos horário de um aluno e de um professor e, mais importante ainda, quais as reais aprendizagens a que ela conduz? Por que se teme esta avaliação? Porque os resultados poderiam mostrar o fracasso do processo de Reforma? (é bom ter presente que um dos 'pais' da Reforma é o titular da pasta da Educação).
Esta é, sem dúvida, uma avaliação de que o sistema precisa, mais do que qualquer outra que se queira inferir a partir dos exames nacionais. Até por que os exames não vão tocar na função essencial do sistema ñ as aprendizagens dos alunos ñ pois os resultados dessas provas, segundo o projecto de diploma, não irão influir na sua classificação. Que absurdo este! Qual então a motivação interna para as fazer?
Pretende-se aferir o sistema sem avaliar os alunos. É a confusão total entre os objectivos de um processo de ensino/aprendizagem onde a avaliação é uma etapa imprescindível e a necessidade (legítima) de avaliar a eficácia do sistema. E assim se invertem as finalidades da educação: não é o sistema que está ao serviço dos alunos, mas estes que são colocados ao serviço do sistema. Isto é, os alunos vão ser utilizados como autênticas cobaias para 'avaliar o desempenho de cada comunidade educativa'.

Hierarquização curricular

Os exames trazem também à tona de água, a hierarquização curricular. Português e Matemática são, agora, assumidamente as mega-disciplinas. É o triunfo, em toda a linha, do back-to-basicks, agora rotulado de 'aprendizagens nucleares', e que enfermou toda a Reforma. O que até aqui não passava de currículo oculto ñ disciplinas de 1ª e de 2ª ñ é agora, de forma inequívoca, promovido a currículo oficial.
Sem querer negar o valor indiscutível destas duas áreas disciplinares, não me parece contudo válido que a Matemática constitua um conjunto de saberes assim tão fundamental para a nossa vida quotidiana (consenso que se quer fazer passar de há uns tempos para cá). A ignorância noutras áreas tem, no mundo de hoje consequências, bem mais gravosas; por exemplo, nesta sociedade tecnológica e neste planeta cheio de fragilidades ambientais exige-se, mais do que nunca, literacias associadas às Ciências Físico-Naturais; para já não falar da Economia, mas essa o ME, com a reforma de 1986, retirou-a do ensino básico, apesar do quotidiano das nossas sociedades modernas ser profundamente marcado pela instância económica. Será que uma deficiência em Matemática é premonitória de um cidadão ostracizado? Quantos não conheceram essa experiência de insucesso matemático e isso não nos pode levar, de modo algum, a pensar que esses indivíduos são falhados no domínio da profissão, da família ou da cidadania.
Relembremos o exemplo do José Gomes Ferreira:

'A mim, foi um professor de Matemática quem me estragou a infância.
Era um senhor alto, ventrudo, glabro, lunetas cínicas e feições gelidamente irónicas que olhava para nós como para feras de bibe e calção capazes de, ao mínimo descuido do domesticador, saltarem para o estrado, comerem-no vivo, roubarem-lhe a caderneta, partirem-lhe o ponteiro na calva e escreverem no quadro, a giz, a divisa libertadora: 'Abaixo as equações! Viva o jogo da barra!'[&ldots;]
Foi esse senhor que me estragou a infância, repito, impedindo-me de saborear os 14 anos possíveis de paraíso na terra. As suas lunetas, a sua voz cortante, o seu riso agreste, não me permitiam respirar em liberdade a alegria de possuir pulmões.
A matemática, em vez de dar ordem e harmonia à minha pequena alma dócil, enegrecia-a de raiva e de indisciplina sem aurora.'

Se fosse vivo, José Gomes Ferreira teria uma nova oportunidade para acrescentar mais uma história ao seu livro O Mundo dos Outros *, logo a seguir a esta em que nos descreve essa terrível experiência com a Matemática. Só que agora o escritor juntaria à lista daqueles que teimam em 'estragar a infância' os nomes de Marçal Grilo & Ana Benavente.
Alterações deste tipo mais não vêm do que dar razão àqueles que (ainda que com outros intuitos) consideram este Governo como 'o mais reaccionário dos últimos 24 anos'.

Luís Souta

(*) FERREIRA, José Gomes (1950),
'Infância Estragada (Memórias em Forma de Panfleto Frustrado)'
in O Mundo dos Outros.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 8ª edição, 1990, pp 87-89.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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