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Globalizações

(O primeiro texto desta edição de Maio, como sempre)

Editorial de Maio de 98

É já um lugar comum, mesmo entre os seus defensores mais incondicionais, que a política e as transformações económicas actuais, estão a gerar desemprego, precarização do trabalho, marginalidade, exclusão, empobrecimento de largas camadas da população e a aumentar o fosso entre ricos e pobres no interior de cada país e entre países e regiões do mundo.
Se antes, estas mazelas apareciam com mais vigor em momentos de recessão económica - as chamadas crises cíclicas do capitalismo - agora elas acompanham o impulso do sistema económico.
As transformações do trabalho na indústria, no comércio e nos serviços; a redução numérica drástica da classe operária e dos trabalhadores do mundo rural; o crescimento rápido do trabalho no sector dos serviços; a diminuição do poder de luta dos trabalhadores, ou pelo menos a colocação da defesa dos seus interesses num nível ainda pouco entendido pelas suas lideranças; o fim da polarização ideológica entre as duas 'grandes potências' deste século, com o desmoronar do Capitalismo de Estado - ou do socialismo real como outros preferem - ; a ofensiva neoliberal sobre direitos sociais e políticos conquistados pelos trabalhadores desde o último quartel do século passado, tudo isto cria uma situação nova que se exprime de forma violenta na precarização do trabalho, na sua desqualificação social e humana, nos vínculos que ligavam os homens e mulheres trabalhadoras entre si, à empresa e à comunidade. Mudanças com profundo impacto sobre os sistemas de educação e ensino.
É possível que a situação actual só encontre um paralelo histórico nos acontecimentos que marcaram a primeira fase da Revolução Industrial, em meados do século passado. Também naquele tempo, transformações tecnológicas e sociais, romperam com violência e rapidez as estruturas económicas e sociais, os comportamentos e os direitos sociais e culturais arreigados durante séculos. O mundo parecia então de pernas para o ar; fumo negro saindo das altas chaminés; trabalho repetitivo; longos horários de trabalho; exploração violenta do trabalho de crianças e mulheres; urbanização tão acelerada quanto degradada; rápido enriquecimento de uns poucos e empobrecimentos de quase todos; mundialização do comércio; mercantilização acelerada de todos os aspectos da vida; alterações do mundo rural; enfraquecimento da vida comunitária.
Essa situação despoletou então novas formas de organização, de resistência e de luta dos que apenas podiam viver da sua força de trabalho. Associações de ajuda mútua, sindicatos, federações e uniões sindicais, partidos políticos, um novo uso da imprensa, foram soluções então criadas.
É possível que estejam, hoje, em construção novas formas de organização social e económica, experiências à procura de respostas para os novos problemas que se nos colocam e até outras formas de encarar o papel do trabalho e porque não da educação?
Parece inegável que vivemos num mundo globalizado. Alguns, dando apenas peso à face negativa desta globalização, erguem-se contra ela e reclamam o passado, um certo nacionalismo e desgastam energias nas causas perdidas.
A globalização, ou a internacionalização de todos os processos da vida, é hoje uma inevitabilidade. O que é de todo necessário é dar-lhe o sentido dos interesses da maioria.

Proveitos

Tomando como boa uma perspectiva de Marcos Arruda, poderíamos sintetizar assim os aspectos potencialmente positivos da globalização:
- a globalização baseia-se em sistemas de produção de escala mais reduzida e flexível, necessitando cada vez mais de conhecimento e cada vez menos de trabalho manual;
- a introdução de inovações na esfera produtiva permitem a utilização da capacidade criativa dos trabalhadores e secundarizam as tarefas meramente repetitivas;
- o desenvolvimento da informática e da robótica reduzem a necessidade de tempo e de energia humana nas tarefas ligadas à produção e à simples sobrevivência;
- são cada vez mais necessários trabalhadores com maior informação e formação, trabalhando de modo flexível e com menor monotonia, com maior controlo sobre o seu trabalho e menor hierarquia no espaço em que actuam;
- surgem tendências para o aparecimento de sistemas de co-gestão e mesmo de co-propriedade;
- cresce o potencial de libertação do trabalho humano em relação ao trabalho assalariado, e de valorização do trabalho enquanto modo comunicativo e criativo, fundamental ao desenvolvimento realmente humano;
- o rápido desenvolvimento da telemática potencia a democratização da comunicação, das relações não apenas mercantis entre as pessoas, comunidades e nações, do intercâmbio de experiências, da complementaridade de potenciais e de recursos, da solidariedade nas aspirações e nas lutas, da expansão da Consciência de Espécie podendo agregar e unificar sem sacrificar a diversidade;
- finalmente, a globalização pode fornecer a base material para que se torne possível aos trabalhadores do mundo inteiro unirem-se, por uma humanidade responsável e solidária, em vez de se combaterem.
Estas são algumas potencialidades que importaria desenvolver e que os professores e educadores não podem perder de vista.

Mas as coisas têm todas, pelo menos, duas faces. A globalização, como vem sendo praticada, está centrada numa competição selvagem que apenas poupa e serve os grandes grupos económicos com capacidade de controle do capital e do mercado, e por isso envolve riscos não só para os trabalhadores, mas também para a humanidade como um todo. Tais riscos poderão, eventualmente, ser assim sintetizados:

Riscos

- ao reduzir o trabalho humano a uma simples mercadoria, estende as cadeias de subordinação do trabalho assalariado à escala global;
- privados da propriedade e do controle sobre as organizações produtivas, os trabalhadores continuam sem direito a tomar ou participar nas decisões sobre o que se deve produzir, como produzir, para que e para quem produzir e como dividir os ganhos de produtividade. Ou seja, continuam a ser uma mera mercadoria.
- os trabalhadores, no actual quadro da globalização, estão prisioneiros da velocidade e do carácter não planeado da reestruturação industrial, as quais estão a provocar, por todo o lado, o desemprego em massa;
- nas Administrações Públicas, os funcionários estão a ser dispensados à medida que os governos locais, regionais e nacionais se conformam em adoptar políticas neoliberais freadoras da expansão e da qualidade dos serviços públicos, seguindo as orientações dos grandes centros de decisão internacionais;

Em resumo, no que respeita ao trabalho, as orientações seguidas a nível internacional, são geradoras de desemprego em massa, aberto e oculto, fomento dos empregos marginais e subremunerados, precarização do emprego, aumento brutal da exclusão social e anulação dos vínculos laborais, condições de vida cada vez mais precárias como resultado dos cortes na despesa pública e nos direitos anteriormente reconhecidos aos trabalhadores, desresponsabilização do Estado perante as políticas sociais e entrega de cada um a si próprio. A estas e outras consequências nefastas para a vida das pessoas acresce uma clara concentração, cada vez mais aguda, da renda e da riqueza.

Por um crescimento que também desenvolva

A globalização, tal como está a ser posta em prática, aprisiona o conceito de desenvolvimento, identificando-o apenas a crescimento económico, modernização e eficiência produtiva no seio das empresas. A interacção entre os agentes económicos é apenas concebida como uma relação entre agentes isolados que se relacionam apenas a partir dos seus interesses individuais, numa disputa de vida ou morte, a que os poderes instituídos chamam competição;
A actual globalização está a impor, a nivel mundial, um conceito de desenvolvimento exógeno e centrífugo, ou seja 'de cima para baixo' e 'de fora para dentro'. Este modelo de desenvolvimento toma como parâmetros os elementos culturais dominantes nas economias altamente desenvolvidas (valores, atitudes, comportamentos, aspirações, modos de relacionamento). Os seus actores dominantes são os grandes grupos económicos e financeiros transnacionais, originários dos países mais ricos. Esta concepção de desenvolvimento e as práticas que lhe são inerentes, são alienantes na medida em que marginalizam pessoas, povos e nações das suas potencialidades mais profundas; sacrifica a diversidade e a soberania e globaliza à custa do nacional, do local, do diferente e do singular. Os países mais ricos, através das suas empresas transnacionais, sugam as sinergias dos mais fracos e alargam o fosso entre países ricos e países pobres.

As economias nacionais e as superstruturas políticas são subordinadas às estratégias e aos interesses corporativos dos grupos económicos e financeiros transnacionais. A lógica destes é predominantemente económica, mercantil, tendo como objectivo fundamental a ampliação dos lucros, da produtividade e da competitividade.
Os mercados nacionais e mundiais estão marcados pela tendência para o monopólio e o cartel, isto porque os grupos económicos se apropriam dos ganhos de produtividade e concentram em si cada vez mais capital em detrimento dos trabalhadores e do emprego.
Estas estruturas dão origem a relações de exclusão económica e politicamente totalitárias. Do ponto de vista do desenvolvimento, essa tendência totalitária da actual globalização expressa-se na rejeição de qualquer projecto de desenvolvimento que não se centre no mercado e no capital. 'Lançados uns contra os outros, trabalhadores, empresários e governantes travam uma luta de morte para prevalecer mediante a subordinação ou eliminação do outro. Um tal sistema de relações, quanto menos regulado e mais deixado ao sabor dos interesses dominantes, mais concentrador e mais destruidor se revela' (Marcos Arruda,1995).
Através do que é designado por 'reorganização estrutural', que tem passado por privatização, desregulação e abertura dos mercados, estabilização e crescimento, transferência do poder de decisão e do debate macroeconómico dos Estados nacionais para instâncias internacionais, a actual globalização beneficia o sector privado à custa da Sociedade e do Estado e leva ao extremo a mercantilização da vida individual e colectiva;
'Ao globalizar a mercantilização dos seres humanos e da Natureza, torna também globais as formas de exploração e de dominação de ambos, e com elas as ameaças de rupturas sócio-políticas e ambientais, diz Arruda.
Perante crises e catástrofes sócio-ambientais geradas pelas suas políticas, são tomadas medidas meramente compensatórias e correctivas dos problemas sem atacar a sua raiz. Veja-se como o elevado número de programas governamentais para ocultar a crise do emprego e a marginalização de largas camadas da população, anda lado a lado com o reforço dos aparelhos repressivos e de controle social. Tais programas e tais medidas não contêm as ondas crescentes de violência e o aumento dos problemas sociais, pelo contrário, tais problemas crescem ao ritmo do crescimento económico. Ou seja, quanto mais riqueza e poder concentrados, maior é a desigualdade, a exclusão e o potencial de desordem e caos social.

Vias alternativas

Resumida a globalização competitiva, conhecedores dos impactos negativos que ela tem sobre a sociedade em geral e sobre a escola em particular, poderemos perguntar-nos: então que alternativas? Em primeiro lugar temos de reafirmar a necessidade de os educadores debaterem entre si, e com outros, estes problemas. É que a comunidade escolar, a não ser que tome consciência política destas situações, dificilmente escapará ao papel de ampliadora dos problemas sociais produzidos pela actual globalização.
Para que o debate se vá fazendo podem, pelo menos aparentemente, apontar-se dois caminhos possíveis para o desenvolvimento da globalização.
O primeiro é o que está em curso. Poderemos caracterizá-lo como 'de fora para dentro' e 'de cima para baixo'. De fora para dentro no sentido de que temos consciência que os grupos mais poderosos absorvem todas as energias e meios económicos ao seu alcance, deixando exaustas e empobrecidas as suas periferias. Os actuais centros mundiais de poder funcionam como aspiradores de energias e de recursos. De cima para baixo porque os conceitos de vida, comportamentos, orientações políticas, económicas e ideológicas, são impostas, de cima para baixo, a partir dos grandes centros de poder mundial. À periferia resta-lhe ajoelhar, servir e empobrecer.
Uma segunda alternativa, e é essa que nos interessa desenvolver, poderia ser caracterizada pelas designações 'debaixo para cima' e 'de dentro para fora'. Significa em síntese acreditar que é possível desenvolver a globalização a partir das pessoas, das realidades locais, regionais e nacionais, da diversidade, procurando libertar as potencialidades contidas em cada uma destas realidades (provocar explosões de dentro para fora).
Uma via que implica, portanto, partir da diversidade das pessoas, comunidades, povos e nações, procurando construir uma globalização enraizada na diversidade e na complementaridade dos seus componentes. Uma globalização solidária.
Desenvolvimento significa, antes de mais, transformar em realidade actual os potenciais inerentes a um organismo. No campo humano e histórico, o desenvolvimento é a transformação em realidade dos potenciais ocultos em cada pessoa, comunidade, povo, nação ou região. Na Natureza, a esses potenciais chamamos Biodiversidade e a sua defesa é indispensável à sobrevivência do Planeta.
No campo humano e histórico, a estes potenciais ocultos chamamos noodiversidade e estamos longe de termos consciência que a noodiversidade é indispensável à vida, à evolução e à sobrevivência da espécie humana.
Nenhum ser humano se basta a si próprio. Só é possível progredir na Espécie Humana, de acordo com a Evolução da própria Natureza, reconhecendo a solidariedade inerente à condição de todos os seres, em particular dos seres humanos, fomentando a complementaridade, a sociabilidade, a irmandade entre as pessoas, aproveitando as potencialidades de cada ser individual, de cada comunidade, de cada povo e de cada nação ou região.
É nossa convicção que o caminho 'de baixo para cima' e de 'dentro para fora' é o mais viável neste fim de século. Trata-se de arrancar do interior de cada pessoa, de cada comunidade, de cada empresa, de cada instituição, de cada nação, a força motriz capaz de promover o desenvolvimento, concebido já não como mero crescimento económico, mas como a transformação em realidade dos potenciais individuais e colectivos.
Neste sentido o desenvolvimento obriga a um papel fundamental da educação. Ou se quiserem a educação, o ensino, a informação terão de estar no coração de todo o desenvolvimento.
É então preciso pensar que cada pessoa é olhada como centro gerador do seu próprio desenvolvimento, o mesmo acontecendo às comunidades e colectivos a que pertence. A marginalização de qualquer pessoa, comunidade, nação ou região é um empobrecimento sério no processo de desenvolvimento de cada um e da nossa espécie tomada como um todo. A persistência numa política de exclusão é um crime contra a Evolução da Humanidade. Um crime de dimensão idêntica aos que põem em causa a Biodiversidade. É que a Biodiversidade e a Noodiversidade não sobrevivem uma sem a outra.
(...) Fazer parte do colectivo dos professores e educadores já não é apenas ter o sentimento de pertença ao colectivo dos educadores e professores da nossa escola, da nossa comunidade, do nosso país, da nossa região, mas ir mais longe e perceber que é fazer parte do colectivo dos professores à escala global. Este modo de ver e de sentir, abre-nos para outras dimensões de abordagem dos problemas, apela a outras solidariedades, cria outros conceitos de justiça, outras formas de pensar a igualdade de oportunidades à escala global. Estas modificações no sentir e olhar, desafiam-nos para outras formas de solidariedade, de comunicação de procura de informação, de entendimento, de abordagem dos problemas, de procura de soluções. E é isto que nos permite pensar numa outra globalização, numa globalização solidária e não competitiva e em desenvolvimento e não mero crescimento económico. Uma globalização construída 'de baixo para cima' que cresce a partir da concepção de noodiversidade, procurando maximizar os potenciais de complementaridade, de sociabilidade entre as pessoas, das comunidades, das empresas, em redes de intercâmbio a todos os níveis.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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