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A minha escola é uma escola de referência (?!)

Para mim sim. A minha Escola é uma escola de referência. Referência de vida, de trabalho, de dedicação e amor. Não vem citada em qualquer manual de pedagogia, não conseguiu ainda produzir, em letra de forma, o seu Projecto Educativo, embora seja, ela própria um projecto de humanismo e de afectividade.

A minha Escola tem uma marca, tem um rosto, tem identidade.

 
Daniel Sampaio, no seu livro 'Voltei à Escola',escrevia, a propósito de duas escolas do Alentejo que visitou, '..., pude observar o cuidado posto na conservação do material. Em ambas vi plantas interiores de belo aspecto, jardins com árvores e flores, esculturas e quadros em muitas paredes. Os alunos são ensinados a valorizar o espaço onde estudam e ajudados a produzir peças de arte para o embelezar.'
Então pensei que este poderia bem ser o retrato da minha Escola. Por acaso não é. Não fica no Alentejo, mas a escassos 30 Km do Porto, um pouco a sul, em Santa Maria da Feira, na terra do Europarque, e de outras coisas mais que não vêm agora a propósito.
- Mas que pretenciosismo o dela - pensarão alguns -, logo no preciso momento em que as escolas de referência, ou de excelência, são tema tão caro ao Sr. Ministro da Educação e à sua Equipa, vem esta reclamar um estatuto desses para a sua escola!
Mas sinceramente, aqui as palavras são mera coincidência, porque não creio que nós, eles e eu, ou seja, o Ministro, a sua equipa e esta humilde professora de História, que sou eu, tenhamos conceitos idênticos sobre tão magna questão!
Afinal o que distingue esta minha Escola?
O que justifica aquela relação especial de professores, alunos e funcionários, com aquele espaço? Por que razão sempre se referem a ela como 'a minha Escola', façam, ou não, ainda parte daquela comunidade?
Trata-se de uma escola diferente? Talvez!
Mas porquê, se os problemas que enfrenta são idênticos a outros que encontramos na esmagadora maioria das escolas portuguesas: sobrelotação, funcionamento em desdobramento, turmas com trinta alunos, mobiliário insuficiente e desajustado (onde muitos alunos não cabem nas mesas e nas cadeiras, porque entretanto cresceram e a Escola foi concebida para alunos do 2º Ciclo), falta de espaços para actividades extra-curriculares, falta de meios financeiros para fazer face a necessidades prementes, falta de tempo(s) para trabalhar em comum!?
Então que factores positivos justificam este sentimento de pertença, esta caracterização de 'referência'?
Talvez porque existe um núcleo importante de professores efectivos, há anos na Escola, que constitui um núcleo duro, com grande intervenção na definição da estratégia de acção no espaço educativo, que é a escola e a comunidade envolvente.
Talvez porque alguma coisa, muito simples e despretenciosa, faz dela um espaço afectivo por excelência, a transforma em território educativo com vida própria, cujo projecto essencial assenta na humanização das relações inter-pessoais.
Talvez porque foi crescendo ali uma cultura colectiva de gestão de conflitos, por vezes duramente construída, que tem marcado comportamentos colectivos e individuais, de interajuda e solidariedade.
Talvez porque esta convivência, e esta conivência (porque ensinar é também um acto de cumplicidades) têm referenciais humanos de professores e funcionários, alguns dos quais já não se encontram no activo, mas que marcaram um estilo e uma forma de vida, de convívio, de organização, de estimulação à actividade de outros.
Talvez porque muitos alunos e turmas se vão destacando cada vez mais pela sua iniciativa e criatividade, sempre estimulada, e que, por sua vez, vão construindo referenciais educativos.
A minha Escola tem um grande orgulho no seu rico património humano.
Mas a minha Escola não é perfeita, nada disso.
Sentimos todos grandes insatisfações. Precisávamos de mais tempo. Tempo para parar, pensar e reorganizar.
Muitas vezes desanimamos ao confrontarmo-nos com as nossas frágeis margens de autonomia, e quase sufocamos, com os imensos problemas para os quais não podemos ter resposta.
Ah! Mas há o espaço (os espaços), esse espaço que é de todos.
O verde e o vermelho não funcionam, à entrada do Conselho Directivo. A porta está aberta para todos. Aquelas paredes são, frequentemente, muito mais do que um mero local onde se tratam questões relacionadas com a gestão da Escola! A própria vida das pessoas, com os seus conflitos, mágoas, dramas e alegrias invade o seu quotidiano e gera solidariedades.
Mas espaços são também os jardins, com uma enorme profusão de canteiros com plantas e flores de toda a espécie, árvores de vário tipo, incluindo árvores de fruto, plantadas ao longo dos anos por alunos, professores e funcionários. O interior dos blocos é decorado com vasos de flores, existindo mesmo, por parte dos funcionários, que lá trabalham, uma espécie de competição, porque cada qual pretende que o seu bloco seja o mais bonito.
É interessante verificar como se foi estabelecendo uma cultura de respeito pela natureza e se desenvolveram atitudes de orgulho de todos os que vivem e convivem naquela escola, porque é um espaço bonito que é preciso preservar. Os alunos convivem bem com as plantas e os mais velhos já impõem aos mais novos as regras da casa: as plantas são para respeitar. É interessante verificar como rapidamente estas normas são interiorizadas.
A minha Escola tem espaços onde os alunos expõem os seus trabalhos, por isso é tão colorida. Ali permanecem alguns testemunhos daqueles que já a deixaram, mas frequentemente continuam a visitá-la e a mostrarem aos outros, cheios de orgulho, o seu contributo para tornar aquela escola, que ainda sentem como sua, um local mais bonito.
Na minha Escola incentivam-se projectos inovadores, da iniciativa de alunos ou de professores. É possível, dentro de um bloco, ou no espaço exterior, verem-se alunos e professores de máquina fotográfica e câmara de vídeo, abordar qualquer transeunte, pregar-lhe com meia dúzia de perguntas, à queima-roupa, dizendo simplesmente que andam a investigar as deficiências da escola, e a registá-las, para que não se percam. Depois reúnem, fazem relatórios, exigem melhorias, muitas vezes atendidas, outras não, já se vê!
Os alunos convivem entre si e com os professores, fazem pic-nics, festas, dentro da escola e ao ar livre. Já está institucionalizado o Baile de Carnaval e o Baile de Final de Ano Lectivo, sempre organizado pelos alunos do 9º Ano. Utiliza-se frequentemente esse privilegiado cenário histórico que é o Castelo de Santa Maria da Feira, para as mais diversas manifestações culturais. Faz-se teatro, concorre-se a iniciativas culturais e ganham-se prémios. Existe um jornal, 'O Tagarela', há bastantes anos, que continua a ser um meio privilegiado de intervenção e criatividade dos alunos.
No final de cada ano lectivo, a minha Escola edita um Anuário, onde, a par das principais iniciativas desenvolvidas, cada turma, professores, funcionários, Associação de Pais se vêem retratados inter-pares, para registo na sua memória individual e colectiva.
A minha Escola até tem uma cadela, a 'vinte e nove', ou seja, a vigésima nona aluna de uma turma que a adoptou há uns quatro anos atrás. Quando nasceram o 'trinta' e o 'trinta e um', os seus primeiros rebentos, foram capa do 'Tagarela'. Agora é mais uma entre nós, figurando a sua fotografia em todos os Anuários da Escola.
Esta é a minha Escola de referência, a minha Escola das referências. Comprometida, interveniente, carente, tantas vezes vacilante, tantas vezes determinada.
Esta forma de ser colectivo, esta identidade, fica aqui também no testemunho da Sandra, que lá, na Minha Escola, que também é dela, viveu, sofreu e cresceu, durante 5 anos.

 

'Abro os cadernos e
diante de mim
vejo a memória de cinco anos de sonho
que me ajudaram a construir.
Chegou a hora de abrir as asas
voar
Cortar o céu com o meu ego.
Mas a memória permanece
porque jamais esquecerei que aqui
cresci e aprendi a saber ser.
Por isso agradeço-vos.

(Sandra, 9ºE/ 1995)

Afinal é isto uma escola de referência? Igual a tantas outras!
Mas quem disse que não há muitas escolas de referência? São, simplesmente, Escolas em que nós, professores, não somos meros figurantes, mas desempenhamos, colectivamente, o papel de principais protagonistas.

 
Manuela Silva
Professora na Escola E.B. 2,3 Fernando Pessoa
(Stª Mª da Feira)

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Manuela Silva
Professora na Escola E.B. 2,3 Fernando Pessoa, Santa Maria da Feira
Manuela Silva
Professora na Escola E.B. 2,3 Fernando Pessoa, Santa Maria da Feira

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