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Escola Inclusiva

O contributo dos dispositivos de apoio educativo para a definição de um projecto de educação escolar inclusivo: Uma questão a discutir entre as margens da autonomia das escolas

1. Os dispositivos de apoio educativo no quadro da ruptura a estabelecer com o modelo escolar

Uma das questões centrais, no que concerne à abordagem da problemática dos dispositivos vocacionados para promover o apoio educativo no seio das nossas escolas, é a de tentar compreender como é que tais dispositivos podem contribuir para a inclusão escolar. E este não é um problema menor no quotidiano das escolas, não apenas devido à ausência de tais dispositivos nestes contextos, como também devido à sua presença, particularmente, quando os seus projectos se definem em função de práticas compensatórias ou supletivas que mais não fazem do que contribuir para a sobrevivência de um modelo de intervenção pedagógica que sem ser capaz de compreender as suas limitações visa contorná-las através da adopção de medidas pedagógicas extraordinárias.

O que se tem de discutir é se nas nossas escolas, tal como exigia Comenius na sua 'Didáctica Magna', continua a ser possível ensinar tudo a todos, como se de um só se tratasse.

O que se tem de discutir, posteriormente, é se os dispositivos de apoio educativo existem para lidar com os excluídos, as vítimas, desse projecto ou se devem contribuir para promover a ruptura com um modelo de educação escolar que o inspira.

O que se tem de discutir, finalmente, é quais as condições necessárias para promover a ruptura enunciada, discutindo-se também qual a configuração que, de acordo com este propósito, os dispositivos de apoio educativo deverão assumir.

A construção e implementação de um projecto de educação escolar de natureza inclusiva caracteriza-se por recusar tanto a homogeneização das práticas educativas dos professores como a aceitação implícita da existência de um aluno-ideal capaz de ser entendido como uma espécie de medida-padrão, a partir da qual se organizaria e promoveria a estratificação académica, fruto de uma operação pedagógica que acabava por contribuir, em última análise, para legitimar a própria estratificação social.

Numa sociedade democrática onde a singularidade da pessoa humana e das suas experiências de vida é tanto um valor a respeitar, como a referência primeira do seu processo de desenvolvimento pessoal e social, tais práticas educativas deixaram de fazer sentido, e assim, da recusa da uniformização pedagógica passa-se à defesa da necessidade de promover a diferenciação das práticas educativas, objectivo que expressa um outro tipo de compromisso educativo entre as escolas e os seus alunos, o qual permite defender que a acção pedagógica das primeiras se define, estrutura e organiza em função das competências e saberes efectivos dos segundos.

A diferença deixa de ser entendida como um factor de penalização daqueles alunos que, por qualquer razão, não são capazes de responder às exigências de uma dada cultura escolar, para ser assumida como um factor de estruturação e de configuração desta mesma cultura, das práticas educativas dos docentes e da organização dos contextos educativos.

A questão que se nos coloca agora é então a de saber como é que os dispositivos de apoio educativo poderão contribuir para a construção de um projecto de educação escolar capaz de lidar com a heterogeneidade dos alunos que chegam às nossas escolas.

A sua existência, só por si, é uma garantia da execução de um tal projecto, ou pelo contrário, pode até chegar a inviabilizá-lo ?

À partida, nada garante que os dispositivos de apoio educativo nas escolas contribuam para a construção de um projecto educativo de carácter inclusivo e para isso basta recordar a ineficácia das acções relacionadas com o chamado apoio pedagógico acrescido ou as aulas de compensação educativa (Roque, 1997), sobretudo aquelas que não são capazes de se libertar do espartilho que o currículo--padrão lhes impõe e dos pressupostos de uma cultura escolar que permanecem indiscutíveis.

Há que reconhecer, contudo, que os dispositivos de apoio pedagógico podem não ficar circunscritos a este papel supletivo, tentando apenas minorar e suprir os efeitos de um programa curricular do tipo pronto-a-vestir ou enveredando por vias paralelas de intervenção educativa que se podem tornar apenas num expediente estratégico para, sem intervir na cultura escolar dominante, ocultar a exclusão escolar e legitimar socialmente esta operação. Os chamados currículos alternativos são hoje a modalidade de intervenção educativa que melhor expressa esta estratégia, independentemente do facto de se poder considerar, neste âmbito, a existência de algumas experiências com qualidade que mereceriam ser objecto de uma reflexão séria, cuidadosa e rigorosa. Afinal, um desejo que se estende a todas as iniciativas do género, de forma a ser possível distinguir, pelo menos, a realidade educativa das operações de 'marketing' educativo do Ministério.

A função dos dispositivos de apoio educativo pode ser, contudo, bem diversa se decidirem investir na reflexão contextualizada, partilhada e contínua sobre as opções curriculares nas escolas onde se inserem, contribuindo por esta via quer para a configuração de projectos alternativos neste âmbito, quer para o desenvolvimento de projectos de formação centrados nas escolas, a partir dos quais seja possível encontrar outros tipos de respostas capazes de contribuir para a inclusão escolar e para a reflexão subsequente acerca das possibilidades, das soluções e das exigências que hoje se colocam a todos aqueles que intervêm nos contextos vocacionados para promover a educação escolar, nos diversos níveis de ensino.

Trata-se, indubitavelmente, de uma função mais ambiciosa a atribuir aos actuais dispositivos de apoio educativo, o que implica que se deva equacionar quais as condições necessárias para que estes dispositivos possam assumir com êxito tal função.

2. De uma visão restrita a uma visão abrangente dos dispositivos de apoio educativo

No presente, os dispositivos de apoio educativo podem ser subdivididos em duas grandes categorias

a) as Equipas de Apoio Educativo;

b) os Serviços de Psicologia e Orientação.

No primeiro caso estamos perante equipas constituídas por professores especializados, ou não, enquanto no segundo caso a situação é um pouco mais diversificada, havendo equipas que apenas possuem um psicólogo, enquanto outras, para além deste profissional, integram também assistentes sociais e/ou peritos de orientação.

Não sendo possível produzir uma caracterização homogénea das suas práticas profissionais, sempre diria que as primeiras se encontram sobretudo vocacionadas para intervir junto de crianças com necessidades educativas específicas, enquanto as segundas, para além de intervenções casuísticas de natureza educativa, psicoterapêutica ou social dirigidas a alunos que na sua grande maioria frequentam o 2º e 3º Ciclos do Ensino Básico, se definem pelo desenvolvimento e gestão de programas de orientação vocacional.

Independentemente da caracterização genérica acabada de produzir acerca das E.A.E's e dos S.P.O.'s pode afirmar-se que quer um quer outro tipo de dispositivo têm um problema essencial para resolver: ou se assumem, prioritariamente, como estruturas de consultadoria educativa ou se assumem antes como estruturas de intervenção de primeira linha.

A opção por uma ou outra das vias enunciadas tem implicações diferentes do ponto de vista educativo, organizativo e administrativo, e pressupõe a existência de concepções diversas tanto acerca do sentido da educação escolar como das condições necessárias para que os projectos neste âmbito possam ser exequíveis.

Em última análise o que está em confronto são duas perspectivas acerca dos dispositivos de apoio educativo:

a) uma perspectiva mais restrita que se circunscreve a iniciativas casuísticas, centradas nos alunos, de carácter iminentemente remediativo e que acabam por se constituir como oportunidades acrescidas às oportunidades educativas já existentes;
b) uma perspectiva mais abrangente que se define através de acções que se caracterizam pela sua dimensão desenvolvimental, assumindo que o alvo não são os alunos em si, mas as instituições e os seus actores, a sua cultura organizacional, as condições concretas que também explicam a natureza e o tipo de iniciativas que se implementam e as relações que se estabelecem tanto entre as escolas e a comunidade envolvente, como entre as escolas e as diferentes instâncias responsáveis pela administração do sistema educativo.

No primeiro caso estamos perante uma perspectiva mais adequada ao modelo escolar tradicional, a uma estrutura e gestão curricular conservadoras e a uma administração centralizadora. De alguma forma os dispositivos de apoio educativo visam contribuir para manter a homeostasia do sistema e salvaguardar a racionalidade meritocrática que subjaz a uma escola que pretende, em última análise, e ainda, contribuir para a alfabetização e domesticação social das massas ao mesmo tempo que contribui para a selecção das elites.

Ao contrário, a perspectiva abrangente pressupõe uma outra concepção acerca dos dispositivos de apoio educativo, entendendo-os como instrumentos de inovação e transformação institucional. É esta, na minha opinião, a perspectiva mais adequada para servir a construção de uma escola democrática e o desenvolvimento concomitante de projectos de educação escolar inclusivos, na medida em que incentiva a acção conjunta e a reflexão partilhada, estimula a intervenção educativa como uma intervenção multiprofissional, capaz por isso de possibilitar a transfertilização de saberes e de experiências profissionais diversas que constituem, por sua vez, oportunidades de formação e desenvolvimento pessoal e profissional para todos aqueles que partilham um projecto comum no seio da comunidade escolar.

Ariana Cosme
Extraído da Comunicação apresentada ao Seminário
'AUTONOMIA PARA A ESCOLA DEMOCRÁTICA'
Lisboa (Novembro de 1997)
FEDERAÇÃO NACIONAL DOS PROFESSORES


  
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto

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