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Júlio Conrado ou a Memória de Abril

Retomando a forma e o sentido de pela memória recuperar o tempo vivido e experimentado, mesmo no desvairado correr dos anos e dos registos que de tudo ainda se pode guardar, Júlio Conrado assume na narrativa Era a Revolução agora reeditada a mesma intenção de pela factualidade histórica querer retratar a presença de um tempo de vivência e descoberta, por entre medos, esperanças e frustrações, entrecruzado de anotações referenciais, mas repetindo, no alargado fio narrativo do discurso ficcional, como acontecera já em Gente do Metro ou As Pessoas de Minha Casa, esse trajecto da realidade que bem conheceu, vivida e observada nos confrontos trazidos da vida e do convívio com os outros. E assim a ficção de Júlio Conrado se desdobra por lugares de experiências sentidas bem de perto e por dentro, nas imagens de certezas e muitos desencantos antes e depois da revolução de Abril, a que esta narrativa claramente se reporta.
Mas de que fala realmente Era a Revolução? Fala-nos de um tempo de sonho e de libertação, mas também de angústia e desencanto nos valores que se defenderam e depressa entraram nos mesmos eixos de uma quase repetida normalidade, sem que as preocupaçõe vivenciais ou ideológicas conhecessem o rumo de uma certa utopia ou a veemência tivesse dado lugar a um vago sentido de desilusão e de frustração nas relações de poder ou de trabalho. Como observa Eduardo Lourenço, em carta a Júlio Conrado de 20 de Janeiro de 1978, trata-se na verdade de 'um texto explosivo, libertador, em todos os sentidos do termo.Não nos falhou em tudo a falhada revolução. Ajustou caras a máscaras e subtraiu carne viva a máscaras. Já é alguma coisa. É mesmo muito'.
Porém, nos limites mais toleráveis ou no entendimento que os anos passados de algum modo já permitem estabelecer, sabe-se que nem tudo foi perdido e o que o sobrou desse grito de utopia que perpassa sentidmente nas páginas desta narrativa de Júlio Conrado publicada há vinte anos e agora reescrita, não para alterar um claro sentido de interpretação ou de denúncia do que se passou, mas sobretudo no propósito de reabilitar com outros olhos essa mesma utopia revolucionária. E assim o que interessa pôr em destaque na releitura de Era a Revolução é essa cumplicidade narrativa e romanceada de o autor, numa linguagem despojada e desenvolta, sentida e experimentada ao rés das águas do tempo e das várias histórias interligadas, querer dar ao leitor essa dimensão humana que mais se valoriza em todos os elementos estruturais do livro: diálogos soltos, descrições vivias de pessoas e lugares, uma linguagem incisiva na definição dos breves episódios que atravessam toda a narrativa, numa bem elaborada recorrência à memória como forma discursiva de aliar todos os pedaços dessa realidade fixada em pormenores bem subtis ou inesperados:
'Confiámos tanto na maturidade daquele Abril! Por algum tempo, roubou-nos aos silêncios que começavam a pesar como presságios nefastos na secura das nossas noites. Eu chegava a casa morto de cansaço. Depois de trabalhar no Banco metia-me no café, onde escrevia críticas sobre livros para uma revista que aparecia às sextas. À noite, estava estoirado. E o silêncio veio, os silêncios, sorrateiros, alastrando, imparáveis, como lepra. Começou o aprendizado da disciplina do vazio. A satisfação doméstica da náusea. O princípio do fim? Como e quando se pôs o silêncio a minar um pacto conjugal até então irrepreensível? Não sei. As palavras de antes do silêncio? Algumas resistiram. As dela. As minhas deixei-as escorregar, por alçapões definitivos, para um lixo não menos definitivo', pág.42
Ora, pela consciência desse vazio ou conspiração de muitos silêncios que se conheceram um pouco por toda a parte, no sentido perdido de certas palavras ainda fazerem sentido, Era a Revolução recupera, a mais de vinte anos de distância, essa 'memória do tempo' ou o propósito denunciador de muito se ter pedido e poucos terem sido os ganhos numa época que durou poucos meses, foi tão conturbada e ainda hoje existem sinais de que nem todo o vazio humano e social se preencheu.
Por isso, tal como já acontecera em As Pessoas de Minha Casa, ponto alto na sua ficção literária, esta narrativa testemunha uma vez mais que, nos limites da memória, Júlio Conrado sabe povoar o passado e o presente com outra gente que andou nos caminhos cruzados da sua pessoal experiência, retratata com toda a verdade e rigor ficcional.

Serafim Ferreira

JÚLIO CONRADO
ERA A REVOLUÇÃO, 2ª. edição
Editorial NOTÍCIAS / Lisboa, 1997.


  
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Edição:

N.º 66
Ano 7, Março 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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