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Evocação de Joaquim Namorado

Passaram agora dez anos que, aqui, na Figueira da Foz, recebi pela primeira vez o 'Prémio do Conto Joaquim Namorado', ainda na agradável e agora saudosa presença do Poeta de Incomodidade. E pude então em breve referência ao que nos fizera ser 'companheiros' de jornada, repartida por outros lugares e circunstâncias, evocar como, sem nos conhecermos, sempre tínhamos andado lado a lado. Primeiro, porque não deixara de antologiar alguns dos seus poemas na antologia Poesia Portuguesa do Pós-Guerra (1945-1965), espécie de cancioneiro poético da resistência ao fascismo, que em 1965 eu e Afonso Cautela publicámos na 'Editora Ulisseia' e a Censura salazarista depressa mandara colocar fora de circulação, e segundo, porque muitos eram os amigos comuns que por Lisboa e Porto a cada passo falavam da sua poesia e, sobretudo, da sua acção e intervenção cultural sempre como firme resistente no combate ao regime do Estado Novo.
De facto, na lembrança da força renovadora que foi trazida à literatura portuguesa dos anos 40 pelo movimento 'neo-realista, o nome de Joaquim Namorado sempre aparece na primeira linha, não por ter sido apenas um dos seus mais acérrimos e coerentes defensores, mas sobretudo pelo exemplo da sua intervenção poética e cultural nos difíceis anos do fascismo salazarista. E assim, relendo na distância dos anos os seus poemas ou alguns dos breves ensaios e críticas sempre em redor de poetas e da poesia, posso declarar que o autor de Poesia Necessária retoma ainda connosco esse mesmo diálogo ou renova, pelo clamor do tempo, os mesmos pressupostos ideológicos e estéticos que justificaram e clarificaram a sua 'poética da cultura'.
Por isso, na memória dos diferentes poetas divulgados pelo Novo Cancioneiro, sabe-se como não existe, no fio dos anos, uma linha de água que limite ou entrelace essa corrente poética neo-realista, para lá dos valores estéticos e ideológicos que todos pretenderam afirmar. E se, por exemplo, em João José Cochofel se adivinhava em Sol de Agosto essa matriz intimista e pessoana que outros livros posteriores haviam de confirmar, se Carlos de Oliveira não recusava, em Turismo, a força e a sombra tutelar de Camões, Antero ou Gomes Leal, se em Manuel da Fonseca, nas reverberações que nunca enjeitará de António Machado ou de Garcia Lorca, era o Alentejo que claramente se erguia pelos 'campos, campos, campos / abertos num sonho quieto', em Joaquim Namorado, no seu Aviso à Navegação, também era demasiado evidente que desde logo se detectavam nos seus poemas as vozes surdas e distantes de Neruda, Lorca ou Álvaro de Campos.
Ora, na exaltação desses valores humanos e estéticos, como de facto é patente nos poemas e textos críticos de Joaquim Namorado, ainda em favor desses 'amanhãs' cheios de promessas, os poetas alinhados em torno do Novo Cancioneiro sempre exaltaram, antes e depois de Abril, a força das palavras e dos actos, na deliberada intenção de sempre colocarem o primado do homem sobre o exercício literário ou poético, e antes, como no caso pessoal de Joaquim Namorado, fazer da poesia uma arma ou ser ela esse 'aviso à navegação' do que podia fazer mudar a vida e o mundo pelas veredas do canto e do sonho, mesmo na atenta e violenta vigilância fascista no poder. Ou ainda como uma clara denúncia da própria realidade social e serem os poetas a voz dessa 'incomodidade' expressa e actuante daqueles que não podiam falar ou cantar.
Por isso, neste momento de evocar, como se impõe, a memória de Joaquim Namorado, no acto de lançamento de mais uma edição 'Prémio Literário do Conto' que o tem como patrono, em boa hora instituído por este Município da Figueira da Foz, digo que o Poeta de Incomodidade continua a nosso lado pela força do seu exemplo literário e, sobretudo, pela forma coerente e empenhada como soube consolidar uma 'poética da cultura' no seu mais profundo sentido.

Serafim Ferreira

XIV PRÉMIO DO CONTO JOAQUIM NAMORADO
Cadernos Municipais
Edição do Município da Figueira da Foz / 1997.

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 66
Ano 7, Março 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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