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Noites UB - Joaquim Castro em Ulan Bator

Ulan Bator - 16.30 - Os encontros da praxe fazem-se no Flamingo Bar ao som de 'Oh! Champs Ellysees' do Joe Dassin, em frente de uma taça de chá. Ali mesmo, junto à Universidade. 'Quero um outro gelado', pede Tsetserleg. Todas as mulheres mongóis tem nomes de flores.
20 Horas - Visita à residência estudantil para estrangeiros cheia de cambojanos, vietnamitas, japoneses, chineses e até um ou outro europeu. Na recepção, os locais são obrigados a apresentar a identificação antes de entrar: reminiscências do tempo da outra senhora. A porteira está enfiada num compartimento de madeira que lhe serve de secretária e de leito. O telefone público funciona ali. Uma dessas noites, com metade do rés-do-chão pintado de fresco, vestígios de serrim espalhado pelo chão, vieram desembarcar umas carcaças congeladas de borregos. Lá fora a temperatura não era para menos: 15 graus negativos.
21.15 - O japonês Taro Saitoh convida-nos a uma visita ao Oril Club. 'Podes arranjar lá as mulheres que quiseres' - afirma. Não é bem assim. O Oril Club é um bar de longas cadeiras e mesas distantes com uma mesa larga ao centro. Eventuais meninas - estudantes por norma - em busca do estrangeiro, mas nem sempre. Bolor (satélite, em mongol) é a vodka que se impõe para essa noite. Quanto à cerveja, fiquemos pela Bulgária. E dois pratos de comida para acompanhar. 'Cada um de vocês paga 5 dólares e o resto pago eu', diz o japonês com negócios no país. A vida está cara na Mongólia.
Na mesa ao lado, dois casais bem aprumadinhos vão perdendo a compostura à medida que a garrafa se esvazia. Refiro-me aos cavalheiros, é claro, porque as senhoras sabem comportar-se. A seguir à bebida, o ocasional pézinho de dança. No final, muito álcool depois, e como quem não quer a coisa, os citados cavalheiros dirigem insultos em nossa direcção. 'Pensam que vocês são russos', explica Tsetserleg, a amiga mongol. Ser russo em Ulan Bator não é propriamente uma vantagem.
22 horas - Entra em cena o homem que vende mapas na Avenida da Paz. Sempre enfiado no del tradicional e de gorro de ponta na cabeça. Vem acompanhado da esposa e do filho. As noites na capital mongol têm destas coisas: tanto se pode deparar com gente enfarpelada, como com nómadas que parecem ter saído do ger familiar para vir beber um café. À saída, o senhor dos mapas reconhece-nos. Saúda-nos, oferece-nos quatro mapas e de abalada lá vai ele... Na mesa ao canto um homenzinho de olhar miserável, sentado à frente do copo com um líquido incolor - vodka ou simples água? - olha-nos fixamente. 'Quelle tronche de flic' - exclama Amid, franco-argelino em deambulação asiática. Polícia é favor. Aquela expressão no rosto mais parece a de um serial killer à beira de uma crise.
Taro Saitoh - 'não gosto das mulheres japonesas' - dança com a empregada na pista improvisada. O serial killer segue-o com o olhar. Atentivamente. 'O verdadeiro problema desta cidade são os homens alcoolizados e os polícias' - gogito para com os meus botões. Um minuto após este meu brilhante pensamento, o serial killer levanta-se do seu túmulo de quatro pernas e fica a balançar em frente à nossa mesa. Embriagado como uma pipa. 'You son of a bitch!' - lança ele, por entre dentes fechados, em direcção ao amigo japonês. Ódio contra estrangeiros ou problema pessoal? O melhor é ignorar. Mas o tronche de flic quer festa. E não se ensaia muito. Manda um soco no ar, mas que visava claramente Taro Saitoh. As empregadas do bar intervêm de imediato, visivelmente habituadas a lidar com situações semelhantes. 'Cíest um kamikaze', exclama oportunamente Amid. Somos quatro estrangeiros que bem podem virar mauzões. Sobretudo quando se está a embirrar com um amigo nosso.
22.30 - Hora do fecho. Tão cedo? Tiram-se os casacos dos cabides. Paga-se a conta. Acaba a musiqueta. Tristeza mais não há. À saída, o japonês é agredido à má fila pelo serial killer que o aguardava à porta. Nova intervenção das empregadas. 'O vodka é mortal' - volta a filosofar Amid. Afastada a ameaça levamos a amiga mongol a casa. Depois, a chinesa à residência estudantil.
23.10 - Ruas esburacadas de Ulan Bator. Junto ao mosteiro em forma de circo duas prostituas aguardam no frio da noite. Mais parecem duas vizinhas em cavaqueira depois do jantar. Entramos num bar com estranha decoração, seguem-nos fugidios olhares dos poucos clientes. Noutro bar, um barracão azul, franqueiam-nos a entrada após alguma hesitação. Mal nos sentamos a uma mesa somos rodeados por duas raparigas, também elas prostitutas, certamente. Sem nos darem qualquer satisfação mandam vir vodka e café. E mais vodka. E mais café. Com certeza esperam que paguemos depois a despesa... Na pista de dança há muito movimento e animação. Amid acaba por encetar conversa com uma das raparigas. Quanto a mim, decido sentar-me ao balcão. Nova rapariga. Senta-se a meu lado, sorri e fala-me em russo. 'Pa ruski, ni gavarito' - respondo. Prontamente, o empregado por detrás do balcão alerta-me com cara de poucos amigos: 'esta é a minha mulher'. Minutos mais tarde, enquanto o empregado se 'entretem' com os rótulos das garrafas, a moça com um sorriso ainda mais convidativo, desmente essa afirmação e diz-me que ele é apenas um amigo seu.
Entra em cena um polícia embriagado - 'só me faltava mais esta' - com a cinza do cigarro a cair-lhe sobre o casaco. Mete-se comigo, com modos bruscos, sugerindo que saia dali imediatamente. Não era a primeira vez nem seria a última vez que recebia esse tratamento por parte de agentes da autoridade locais... Ignoro-o, por isso mesmo, com um olhar de desprezo. Polícias bêbados, corruptos e prepotentes é o que mais abunda nas ruas da capital da Mongólia.
Duas da manhã - Deambulamos pela noite. À saída do bar Cosmos, onde se avistam frequentemente estrangeiros embriagados, abordam-nos duas adolescentes de aspecto pobre. Um sorriso é suficiente. 'Tua ger'?, pergunta a mais baixinha. Uma delas é um verdadeiro capuchinho vermelho e a outra está grávida de seis meses: criança de rua em perspectiva. Estranha beleza, a dos néons. Raros ainda em Ulan Bator. Depois das 2 da manhã tudo está fechado. Na rua permanecem grupos de vendedores nocturnos. Junto aos seus velhos Ladas e Volgas, com os motores a trabalhar, transaccionam vodka à socapa. E ao frio gélido do final de Outono mongol.

Legenda:À saída do bar Cosmos, onde se avistam frequentemente estrangeiros embriagados, abordam-nos duas adolescentes de aspecto pobre. Um sorriso é suficiente. 'Tua ger?', pergunta a mais baixinha.


  
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Edição:

N.º 66
Ano 7, Março 1998

Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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