'O sonho comanda a vida' anuncia o poeta cientista. Verdade incontestável quando se está desperto! Certeza virtual durante o sono que é território do fascinante reino do fantástico! Uma pergunta, porventura fruto de mente que se não quer assumir como redutora, me assalta frequentemente: de que cor(es) se pintam os sonhos dos que não possuem retina reflectora, daqueles a quem se chama cegos? Cegos não são seguramente, até Descartes o diria! Apenas não conseguem 'só' olhar para ver. Eu, considerada pela sociedade como utilizadora de todos os sentidos, no critério tradicional da classificação, fruo o privilégio de ser realizadora, guionista, e, tantas vezes, observadora/intérprete do espectáculo do sonho. Asseguro que há vivências a preto e branco e também as há de paleta infindável. Curiosamente, ou talvez não, o terror e até o sangue são enroupados quer de sinistras mil cores fortes, quer de cambiantes de leves cinzentos ( não de prata, naturalmente). As sombras transportam-me a espaços etéreos. As sombras são aterradoras . As cores, as outras, ora são mares reflectindo despedidas deslumbrantes do rei-sol, ora são ferida e dor. As formas sugerem-me amantes. As formas confundem-me e apontam-me o caos. Os planos intersectam-se. Os planos sobrepõem-se. Os planos não são planos. As expressões são claras e são de breu. E a tal parcela da sociedade (parcela ou integrante ?)? Lá que sonha, sonha! Certamente combina gostos e gozos com texturas, com melodias e barulhos, com calor e frio, com aromas maus e bons, em cenário de encantamento tecido. Não é isso sentir ... pressentir? Conheço, de vista, um casal unido na felicidade da solidária falta de visão. Que o nó da gravata não estava bem feito, que era preciso ir ao barbeiro. Que tinha razão, excepto no que dizia respeito à gravata, era assim mesmo que a queria; que estivesse ela mais atenta aos agasalhos, uma gripe ia torná-la menos bonita. Que limpeza da vistas! Que sujeira de armadilhas traiçoeiras lhes armam os normais! Que tolerância exclusiva exercitam, que lindos discursos proferem (felizmente, há quem consiga passar de cego a surdo)! Quem diz que vê, veja mesmo. Basta consultar os resultados de entrevistas a candidatos ao primeiro emprego e olhar também para as fichas de identificação. É contabilizar as passagens para peões com avisadores que não sejam: vermelho, amarelo e, ás vezes, verde, por via de um braço amigo sem dó nem piedade (leia-se: caridadezinha). E os 'monumentos' publicitários que ornamentam os nossos passeios? Os amigos cegos têm a felicidade de não serem agredidos visualmente, mas sofrem as consequências dos contactos directos. Nunca comuniquei, durante o sono, com cegos dos olhos. Por que não virão eles aos meus sonhos a dormir? Haverá deficit de escuridão? Estará assim tudo tão em branco?
Março de 1998 Iracema Santos Clara
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