Página  >  Edições  >  N.º 65  >  Artesão ou a difícil arte de amassar o barro

Artesão ou a difícil arte de amassar o barro

Fazer do artesanato profissão, em Portugal, não é fácil. A desorganização estrutural mais ou menos generalizada caracteriza este sector, evidenciando-se, nomeadamente, pela falta de uma regulamentação oficial e de um estatuto profissional próprios. Além disso, diz quem trabalha na área, o artesanato podia e devia constituir-se como uma actividade mais criativa. Muitos dos novos artesãos 'limitam-se a reproduzir peças e ideias', faltando quem inove. Desenvolver uma investigação sobre materiais e formas revela-se um processo árduo, requer tempo e interesse. 'Mas muitos, simplesmente não estão para se dar a esse trabalho'.
Miguel Oliveira, um jovem artesão de Oliveira do Douro, em Vila Nova de Gaia, exemplifica de forma prática a sua posição. Uma das técnicas por ele desenvolvida dá às peças um aspecto granítico tão perfeito, que só o toque e uma observação mais cuidada permitem alterar essa percepção. 'Foram precisos cinco anos de pesquisa e de experiências para atingir este resultado. Por diversas vezes, clientes e colegas de ofício perguntaram-me qual o segredo. A alguns deles ainda dei pistas, mas nunca revelei quais os métodos e os materiais que utilizo'.
Como explica, esta atitude não se deve ao facto de não querer partilhar os conhecimentos que vai adquirindo. É tão só uma questão de princípio, por considerar que a curiosidade em conhecer os materiais, saber quais as suas possíveis utilizações e respectivas capacidades de combinação e resistência, devem sempre partir do artista. Os livros sobre técnicas e materiais de artesanato, escritos ou traduzidos para língua portuguesa, são escassos. Para aprofundar os conhecimentos teve de procurar bastante e realizar uma consulta exaustiva de obras de autores estrangeiros especializados na matéria. Depois, 'foi apenas uma questão de persistência'.
A sua aventura começou há doze anos. O gosto pelo artesanato e pelo 'design', conjugado por alguma falta de sorte nas profissões que até aí desempenhara - desenhador de mobiliário metálico e dactilógrafo - levaram-no a apostar na criação do seu próprio emprego. Uma pequena garagem e um forno foi tudo quanto bastou para se lançar, mas a conquista de um lugar ao sol foi lenta e baseou-se primeiramente na observação do mercado e nos contactos que foi estabelecendo com as lojas e com as feiras do sector.
A sua matéria-prima de eleição é o grés, uma liga de areias e cimento com características de maleabilidade e utilização muito próprias, comprado a uma empresa galega de Vigo. Em Portugal, refere, existe uma fábrica nas Caldas da Rainha que comercializa este material, mas o grés espanhol é mais competitivo: custa menos dez escudos por quilo e é entregue no domícilio.
Ainda assim foram precisos cerca de quatro anos para atingir o equilíbrio financeiro. Nesse período não chegou por vezes a ganhar sequer o equivalente a um salário mínimo. Não fosse o facto da mulher ter um emprego estável e razoavelmente remunerado, teria, mais tarde ou mais cedo, desistido.

Estatuto precisa-se

O artesanato tem vindo a perder qualidade nos últimos anos, 'porque os artesãos não souberam tornar-se independentes dos poderes públicos e investir mais na sua imagem'. A dependência económica e organizacional face aos órgãos autárquicos e institucionais, condu-los a situações, segundo Miguel Oliveira, 'menos dignas'. Sempre que se desloca em viagem, por exemplo, nunca revela a sua verdadeira actividade e faz-se passar por empresário. 'É a única forma', diz ironicamente, 'de não me mandarem dormir para o sótão'.
Conseguir um espaço de venda nas feiras do sector é outra das dificuldades com que se depara. Nestas ocasiões torna-se quase obrigatório ter algum conhecimento junto dos elementos da comissão organizadora, havendo mesmo quem não se iniba em prejudicar a imagem de um colega com o intuito de salvaguardar a sua posição, diz. 'Pode parecer uma situação surrealista, mas o facto é que as entidades organizadoras e os elementos a elas afectos não têm formação técnica para avaliar a qualidade dos trabalhos e dos participantes. São pessoas habitualmente ligadas a juntas de freguesia ou a câmaras municipais que, apesar da experiência acumulada de anos, fazem o que querem e o que acham melhor sem consultarem ninguém'.
Aqui ao lado, em Espanha, são as associações de artesãos que organizam os certames e definem as regras de participação. E se do outro lado da fronteira existem pelo menos duas ou três associações por região, 'em Portugal há duas e funcionam mal'.
Tudo isto, explica, porque não existe um código de regulamentação do sector e um estatuto profissional. 'É urgente determinar, de forma inequívoca, quem são os produtores, os intermediários e os organizadores, sob o risco de se cair numa indefinição de papéis que em nada beneficia os intervenientes'. No âmbito dos artesãos produtores, seria indispensável fazer uma triagem entre profissionais e amadores e fiscalizar eficazmente a actividade.
Mas a hipotética imposição destas medidas, por si só, não esconde a fragilidade do artesanato português e a inexistência de uma verdadeira política nacional para o sector. 'Os poucos programas de apoio são os mesmos desde há doze anos. Não é, por isso, um problema de mudança de governos. É uma questão de não intervenção do Estado', conclui.
À larga maioria dos artesãos não resta senão aguardar pelo natal e assegurar o rendimento que lhes financiará o primeiro trimestre do ano seguinte. O inverno é caracterizado por um fraco nível de vendas, fazendo com que aquele período festivo represente como que uma 'tábua de salvação'. 'É uma vida bastante instável', desabafa. 'Eu compreendo que as pessoas não disponham de muito dinheiro para adquirir artesanato, mas não é verdade que este seja caro, tal como muitas vezes é dito. Temos de rotular as peças com o seu justo valor, se não andávamos a enganar-nos a nós mesmos'.

Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo