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'Uma Papoila'

No final da primeira aula da tarde, entrei na sala de professores e sentei-me numa cadeira perto da porta. Peguei no jornal do dia e mal comecei a folhear, fui interrompido por um funcionário. Tocou-me nas costas e perguntou-me se era o director de turma do 8º C.
Respondi afirmativamente, ao que ele me pediu que o acompanhasse. Saímos da sala de professores e dirigimo-nos a uma sala imediatamente a seguir onde se encontram instalados os computadores para os professores.
Ao entrar deparei-me com o Carlos e com o Daniel. Comecei a ficar irritadíssimo, alguma coisa se tinha passado, de certeza que tinham feito mais alguma asneira. No prazo de uma semana já era a terceira ou quarta vez que faziam alguma coisa. Um vidro partido, faltas disciplinares, e sempre por estarem a brincar e a dizer piadas.
O funcionário, fez-me a queixa que pretendia e disse-me que se eu não tratasse do caso ia ele ao Conselho Directivo. Disse-lhe para deixar estar. Tinham andado à porrada e aos insultos no balneário e tudo terminou com os dois debaixo do chuveiro, vestidos e tudo, mas pelos vistos reconciliados e bastante divertidos.
Na minha disciplina estes alunos bem como todos os outros da minha direcção não me dão qualquer problema disciplinar, o mesmo não podem dizer os meus colegas bem como os funcionários. Ainda a semana passada mandei chamar os encarregados de educação destes dois.
À minha irritação juntava-se agora uma certa revolta e mesmo frustração. Sempre que há problemas tento ser compreensivo e conversar com eles, no sentido de os responsabilizar. Normalmente resulta, mas pelos vistos, só normalmente. Tanto um como o outro são extremamente simpáticos, aquilo a que se poderá chamar como 'tipos porreiros', mas muito infantis. Todas as tropelias que fazem estão relacionadas pura e simplesmente com brincadeira.
Disse-lhes, mais uma vez vou chamar os vossos pais. Peguei em dois postais e escrevi os endereços dos respectivos encarregados de educação e fui para a aula pois já tinha tocado há algum tempo.
Estas crianças não são nenhumas ervas daninhas. Gosto de pensar neles antes como duas papoilas que irreverentemente embelezam uma seara madura. Embelezam neste caso a instituição que é a escola porque simplesmente embora já adolescentes, recusam-se a recalcar a criança que insiste em não ser esquecida e vive dentro de eles.
As papoilas só se destacam porque todo o meio envolvente, embora dotado de alguma beleza, apresenta características monotonamente iguais.
Talvez o Carlos e o Daniel não se destacassem tanto se todos os outros elementos da instituição, desde o edifício às pessoas que os constituem, fossem tão normalizados. A escola é um edifício de arquitectura espartana, onde o cimento e a geometria das formas são a regra (muito pouco acolhedor) as pessoas (adolescentes e adultos) assumem um cinzentismo, não menos grave que o de betão armado que constitui as paredes do edifício.
No intervalo seguinte, o Daniel veio ter comigo e perguntando-me se podia falar comigo, desviou-se para um canto e falando muito baixinho:
- Não diga nada a ninguém professor, mas o Carlos está a chorar na casa de banho.
Indaguei então: - Porquê
Ao que ele continuou:
- É que a mãe dele, disse-lhe que se houvesse mais alguma queixa tirava-o da Escola e punha-o a trabalhar na 'lavoura'.
O pequeno contacto que tive com a mãe do Carlos era suficiente para saber que os receios do Daniel tinham fundamento. Mandei chamar o Carlos, a fim de conversar com ele. Estava confrontado com um grande dilema, o que o Carlos necessita é de atenção, não de um castigo destes. O Carlos, é um 'miúdo' pleno de potencialidades, o seu comportamento é fruto apenas de uma irreverência própria mas incontrolável. Isto, simplesmente porque nunca lhe foi dada a oportunidade de a aprender.
Não vou permitir que esta papoila seja cortada, pois uma vez fora desta seara, transformar-se-à numa autêntica erva daninha, e mesmo numa planta carnívora.
A sua socialização tem de ser feita aqui, mesmo que para isso o trabalho do director de turma excede as tarefas institucionalizadas.
Dirigi-me ao Carlos fiz um negócio: 'Só mando o postal para casa se houver outra queixa, coisa que acho que não vai acontecer! Pois não?'
Os seus olhos pequenos e muito verdes recomeçaram a brilhar intensamente:
- Claro que não professor.
É óbvio que sozinha esta papoila nunca teria conseguido cumprir o seu negócio. Foi necessário mostrar ao Carlos, e de uma forma quotidiana que eu me mantinha atento às suas atitudes comportamentais, através de pequenas chamadas de atenção, 'Então senhor Carlos, há novidades?' ao que ele me respondia 'Novidades? Claro que não!' E eu fechava com 'acho muito bem...' ou 'assim é que eu gosto'.
Esta papoila foi assim sendo mimada, através de uma crescente responsabilização pelos actos próprios e, naquele ano, nunca mais deu qualquer problema.

Arlindo Antunes de Sousa


  
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Arlindo Antunes de Sousa

Arlindo Antunes de Sousa

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