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Em Memória de Aureliano

É verdade que os prémios não se agradecem, mas o facto de ser atribuído o 'Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho' a um novo livro, depois de o ter já recebido em 1994 com a narrativa Livro de Horas (Memorial de Odivelas), justifica algumas palavras de circunstância, não só por saber reconhecida a qualidade do livro que sujeitei à apreciação do júri na edição deste ano, mas sobretudo porque se trata de uma narrativa ficcional que atravessa por dentro, em comovida memória e homenagem, o itinerário do Poeta e Escultor Aureliano Lima (1916-1984), de quem fui bom amigo e companheiro de todas as horas ao longo de quase trinta anos.
De facto, ao contrário de outros livros que tenho publicado (e entre eles se conta Livro de Horas, em que de forma desenvolta e intencional pude falar do tempo de el-rei dom João quinto e dos amores de madre Paula de Odivelas), esta narrativa O Poeta e a Pedra percorre outros caminhos mais próximos de nós e descreve os aspectos primordiais da vida e obra de quem, nascido em Carregal do Sal, deixou as paragens de Lagares da Beira e de Nelas para se radicar em Coimbra e aí ter convivido nos anos 40 com os poetas e escritores que forjaram a sua própria universidade, como Afonso Duarte, Paulo Quintela, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Eduardo Lourenço ou Mário Braga, para em finais de 1950 se instalar no Porto e em Gaia ter consolidado a sua obra de escultor e poeta em mais de quarenta anos de vocação e de trabalho.
Na verdade, desde os seus primeiros retratos (Antero, Camilo, Torga, Afonso Duarte ou Pascoaes), onde soube captar o lado mais oculto de quem desejou fixar no gesso ou no bronze, Aureliano Lima manteve as mesmas preocupações estéticas nos limites da própria realização: fazer uma obra que, dentro das tendências vanguardistas da moderna escultura, fosse no essencial a forma, o modo e o tempo da sua própria linguagem plástica: na escultura, na pintura e na poesia. Aí se assumiu por inteiro e em plena coerência: ao longo de muitos anos de experiência (ou de servidão), essa obra revelou-se em si e por si mesma, passou realmente a existir, revela ainda hoje a clara singularidade de ocupar um lugar preponderante na arte portuguesa do nosso tempo, como ainda em Setembro último aconteceu com a exposição de esculturas em ferro na Galeria Municipal da Amadora e no âmbito da V Bienal de Escultura.
Um pouco na linha ficcionista de Jorge Luis Borges, num misto de narrativa e de ensaio biográfico, mas talvez mais à sombra tutelar de André Malraux e das suas Vozes do Silêncio, julgo que pelas páginas de O Poeta e a Pedra se pode descobrir esse fio indizível que escorre de um diálogo coerente do que foi o suporte da sua arte, por entre sobressaltos e algumas dúvidas, porque a vida se cumpriu como destino no seu modo pessoalíssimo de estar na arte ou entender uma 'poética das formas' como espaço criado e inventado para ocupar depois outros espaços: o eterno retorno, o mito e o sagrado, o rigor, a certeza da própria descoberta, o acto de pensar e fazer, o mármore e o ferro, o poema e a pedra. E assim posso também dizer com Eduardo Lourenço, que foi seu amigo de muitos anos, que 'o que era visível em Aureliano, no jovem amigo de andanças comuns e no companheiro reencontrado pouco tempo antes da sua morte, era a presença intacta do seu fervor e do seu amor pela aventura da criação, o traço vivo do 'rio subjacente' que o acompanhou sempre e lhe conferiu um destino de Artista e de Poeta'.
Por mim, o que mais me importou nesta narrativa, agora galardoada com o 'Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho', foi trazer à luz do dia um Poeta e Escultor como Aureliano Lima que fez da sua obra uma 'arte de silêncio' no silêncio do atelier, anos e anos a fio, suportando a cada passo muitos amargos de boca, mas sem deixar de persistir no caminho dessa sua vocação. Por isso, se outra coisa não quiser ou não puder exprimir, O Poeta e a Pedra é uma narrativa de ficção claramente intimista e poética em que percorro os rios e lugares que foram do seu trajecto pessoal e, em memória do rei-trovador, ser o modo próprio de saber novas do meu amigo e de longe, no cemitério de Mafamude onde ficou sepultado, ainda o ouvir cantar:

Sejamos nós domingo: sejamos
alegria das 'flores do verde pino'
- ó Dom Dinis - 'ai, Deus, e u é...'
Tu no passado: eu aqui
neste metal fundido. Com
aviões de esperança na praxis
do espaço - com higrómetros e
sons na rota de carbono.
Quem dera que a vida
fosse pura: aqui e em
toda a parte.

Palavras proferidas na entrega do Prémio Literário MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO

Biblioteca Dom Dinis (Odivelas), 10.Dezembro.1997.

Serafim Ferreira


  
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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