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O liceu

O Pedro está a iniciar o 10º ano, com obrigatoriedade do 12º. É um jovem um pouco especial, com interesses e curiosidades desenvolvidas para lá do que seria de esperar na sua idade, sobretudo, tendo em conta o seu contexto social e cultural, com pouca oferta, poucas alternativas e pouca diversidade. Exibe as marcas fortes de uma adolescência mais exigente do que generosa, mais inclinada a avaliar do que a avaliar-se, com traços de impaciência e, como é próprio da idade, de alguma impulsividade. A desilusão com as pessoas e as coisas fazem-no sentir-se zangado com o mundo e predisposto a mal julgar os outros.
Mas o mais interessante no Pedro é a sua enorme atenção a todas as coisas, o seu espírito de análise e de reflexão.
O seu sentido crítico é implacável e isso, às vezes, ajuda-nos a olhar o que nos rodeia com outros olhos; então reparamos em pormenores, comportamentos, atitudes, que quase já não significam nada para nós, pois baixámos os braços perante a força do rolar dos dias.
Nem sempre o Pedro é justo, mas questiona e inquieta. Senti esta lufada revigorante ao ouvi-lo falar da sua ida para a escola que frequenta desde o 7º ano. A mesma escola onde dou aulas há muitos anos e que nem sempre questiono, com contradições diluídas na erosão do quotidiano. São muito expressivas as suas lembranças de criança e de adolescente, lembranças temperadas de crítica e interpelações. A escola de que fala é um antigo e clássico liceu, edifício em pedra, átrios e corredores com arcada, altos degraus em pedra e um elevado pé direito. A pedra e a madeira tendem a dar-lhe um ar solene.

Desde muito pequeno que eu estava desejoso de chegar ao 7º ano, para ir para o liceu – eu sei que já não há liceus, mas é como toda a gente lhe chama. Eu ia lá algumas vezes, ainda muito pequeno, com umas vizinhas que me iam buscar ao infantário e que, às vezes, passavam pela escola delas antes de irmos para casa.
Eu entrava e ficava emocionado diante daquele grande edifício, onde tudo era tão alto, um enorme aquário à entrada, uma biblioteca que parecia nunca acabar, cheia de livros em estantes de madeira e portas de vidro. Era imponente. Ali, imaginava eu, era um local do conhecimento, onde os grandes e os professores, com quem me cruzava a pouco mais da altura dos seus joelhos, deviam saber coisas fascinantes. Por isso eu aguardava com impaciência o meu tempo, a minha vez de ser um deles.
Aguardava a possibilidade de entrar como aluno naquele majestoso edifício de pedra, austero mas acolhedor.
Depois ia imaginando, como se via em alguns filmes, que aquilo era uma espécie de Harvard em miniatura: as conversas interessantes, os professores encontrar-se-iam nos intervalos com os alunos para falarem e pensarem em conjunto, talvez até sentados informalmente em relvados; aprenderíamos com palestras, conferências, colóquios; haveria imensas coisas aliciantes para conhecer; a biblioteca seria um lugar de pesquisa, teríamos sobre a mesa os livros e materiais para os grupos de trabalho e haveria um clube de xadrez – eu ainda não tinha jogado xadrez, mas achava que devia ser apaixonante.


Mas foi uma desilusão!... Afinal, aquilo não era tão grande e imponente como eu recordava – eu tinha crescido, entretanto – e já nem estava lá o aquário à entrada. Não havia clube de xadrez, não havia relvados, não havia encontros com os professores para falar de assuntos que queríamos conhecer, não havia palestras nem seminários e as aulas eram muitas vezes aborrecidas; a turma era um grupo de palermas, entretidos em conversas e brincadeiras parvas e desinteressantes, como se fossem crianças da primária.
A biblioteca era bem mais pequena do que eu imaginava. Agora acho que é complicada, cheia de regras sem sentido: se as mesas forem de quatro e o grupo de trabalho for de cinco, não podemos pegar numa cadeira, mesmo vaga, porque é proibido mexer no mobiliário… As mochilas têm de ficar à entrada, num monte, e sempre que precisamos de algo, toca a interromper o trabalho para ir lá buscar…
Nos laboratórios quase nem fazemos experiências, porque somos demasiados para os equipamentos existentes...
Pensei que o Secundário seria melhor – afinal, éramos todos mais crescidos – e talvez os professores nos dessem mais importância. Mas agora os professores estão demasiado aflitos com o programa e não têm tempo para conversar connosco. Contam-se pelos dedos os que discorrem sobre assuntos mais complexos e curiosos, coisas da vida e do mundo.
Sinto mesmo uma desilusão. Afinal, o grandioso edifício que era o liceu não é nem parecido com um templo da sabedoria, não corresponde nada, mesmo nada, ao que eu esperava. Tudo um engano!

Angelina Carvalho


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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