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Decantações de um verão

*À data em que o texto foi entregue para publicação, nem o autor nem o Presidente da República poderiam imaginar a notícia saída nos jornais de 2 de agosto, segundo a qual Espanha enviou um documento às Nações Unidas em que considera inaceitável dar a Portugal a jurisdição de 350 milhas em torno das Ilhas Selvagens.

Alguns céticos perguntarão se a viagem de dois dias que o presidente Cavaco Silva fez às Ilhas Desertas (também chamadas, com pouca ou nenhuma lógica, Ilhas Selvagens), num momento crucial da política nacional, não teve como inconfessado motivo o registo, pro memoria – lavrado em placa colocada na parede do abrigo dos vigilantes estacionados na maior das três pequenas ilhotas desérticas que constituem o arquipélago vulcânico integrado na jurisdição da Madeira – de uma visita “histórica”, alegadamente realizada para assinalar o 50º aniversário da primeira expedição científica ali operada pelo ornitólogo de origem inglesa Paul Alexander Zino, hoje desenvolvida com a ação do navio hidrográfico Gago Coutinho.
Esta viagem foi ainda considerada de interesse estratégico, não por razões militares, certamente, mas tendo em conta a defesa da área que Portugal vem reivindicando como Zona Económica Exclusiva, contra as pretensões dos seus parceiros da CEE com interesses marítimos, que não veem com bons olhos a extensão da zona defendida por um concorrente tão limitado de recursos como é Portugal. Aliás, não estarão hoje em causa razões explícitas de soberania face a supostas pretensões territoriais estrangeiras, quais da vizinha Espanha – pela proximidade com o arquipélago das Canárias – como foram marcadas por conflito diplomático que até envolveu o Vaticano no tempo das suas descobertas, o qual, menos ou nada explícito nos séculos seguintes, já não teriam inspirado as visitas “históricas” dos presidentes Mário Soares e Jorge Sampaio, em 1991 e 2003…
Cavaco Silva responderia aos céticos que o seu interesse pela exploração dos mares nacionais, ultimamente repetido nos seus discursos como um recurso de primeira grandeza para a consecução dos superiores desígnios do país, não era, pois, uma mera retórica reduzida a uma inscrição celebrativa na parede da única habitação existente e na anilha na perna de uma cagarra que, depois de largada do ninho para cumprir o seu destino transatlântico, só regressaria cinco anos depois, segundo alguns biólogos, para continuar a estirpe.
Também não consta que, mesmo como um assomo poético de bom humor, junto à comitiva, o presidente tenha evocado Petrarca e Pessoa para lembrar a famosa frase que vem dos mareantes da Antiguidade: “Navegar é preciso, viver não é preciso”, para não ser exposto à interpelação de algum literato componente do grupo de convidados – “Viver não é preciso?...” – a que teria podido furtar-se, ainda poeticamente, com outra evocação pessoana das Odes: “Chamam por mim as águas, / Chamam por mim os mares, / Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes, / As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.”
A quem estranhasse este assomo poético de um reputado catedrático em estudos económicos, nunca identificado (justa ou injustamente) com paixões literárias, que, no exercício dos anos de governação, tinha viajado pelo que fora o imenso Império português (da Índia ao Brasil), Cavaco Silva ainda poderia, momentaneamente retemperado por uma ufana memória do rústico Boliqueime, aduzir como o Pastor de Rebanhos: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo… / Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer / Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura…”
Mas mais realista do que sugeria a manifestação de um nostálgico orgulho patriótico, o reputado economista que representa o Estado português porventura daria da famosa frase a interpretação, por outrem antes feita, esperada de um pragmático: o sentido de “precisão” devia ser entendido pelos antigos navegadores como o conhecimento de dados objetivos que enformavam, ainda que com riscos calculados, os seus projetos, por forma a não se entregarem a uma mera aventura sujeita ao acaso e à sorte – como era a vida, hoje, dos portugueses, sem os projetos, ideias e certezas exigíveis a quem confiaram determinar o rumo dos seus destinos.
Terminada a breve vilegiatura nas ilhas desde sempre desafortunadas e regressado ao cais continental afrontando um verão escaldante, em que um povo sofredor, mas ainda esperançoso, clamava provocatoriamente “Navegar não é preciso, viver é preciso!”, o seu presidente só lhes podia dizer, rendido, para aguentarem enquanto puderem, e pensar como o Poeta, “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!

Leonel Cosme


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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