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Um filme urgente

A vitória trabalhista tinha cinco desafios: pobreza, miséria, educação, saúde e emprego foram atacados, apesar de o clima económico da altura ser bem mais dramático do que o actual.

Um filme estimulante, comprometido e frequentemente comovedor... Filme urgente, do documentarista ocasional Ken Loach, The Spirit of´45 chega num momento-chave da economia britânica, europeia e mundial, quando o domínio público, a sociedade civil e o Estado social estão radicalmente a ser revistos, ou mesmo apagados, por um governo de coligação (lá como cá), cujos membros, numa ironia que não escapa ao realizador, beneficiaram do que agora se propõem desmantelar.
Recorrendo ao angry love a que nos habituou nos filmes de ficção, Loach usa arquivos de imagens reais e comentários contemporâneos para honrar e investigar a vitória trabalhista nas eleições de 1945 e o início de um explícito programa socialista de obras públicas, central para a construção do Estado social no Reino Unido e para a nacionalização das indústrias-chave.
Loach lembra pormenorizadamente as condições de vida chocantes na sociedade britânica entre guerras, assim como as promessas trabalhistas, concretizadas em muitos sectores.
A vitória trabalhista tinha cinco desafios: pobreza, miséria, educação, saúde e emprego, que foram atacados, apesar de o clima económico da altura, comparando com 2013, ser bem mais dramático.
O filme alerta sistematicamente para numerosas contradições, entre as quais como um dos países mais ricos do mundo, governando um império, tolerava as piores condições de habitação da Europa. Tendo como alvo o poder das forças de mercado, “se há uma necessidade e nenhum lucro à vista, a necessidade continua sem resposta”, The Spirit of ´45 dirige no final a sua atenção para os triunfos dos anos ‘40, não deixando de lembrar os erros do projecto de ‘45, até à vitória de Thatcher (1979) e a passagem da direcção do foco, indiscriminadamente, do colectivo para o individual, com o consequente abandono dos vulneráveis e a percepção dos pobres como problema e ameaça.
Ao fechar com um apelo ao activismo intergeracional – com especial ênfase para a defesa do NHS (o nosso Serviço Nacional de Saúde) – e imbuído da celebração deste histórico e icónico momento, que é menos nostálgico do que a convicção que podemos aprender com os sucessos e erros do passado, o filme funciona ao mesmo tempo como prova e exemplo, desafiando o actual governo a mudar de políticas, a direcção dos trabalhistas a reviver os seus princípios fundadores e o sentido de missão e, finalmente, nós, os demasiado passivos, a agir enquanto é tempo, e as estruturas, serviços e ética da sociedade que a maioria pensa estarem garantidos para sempre, mas que, se não nos movermos, um dia acordaremos a lembrarmo-nos, como hoje nos lembramos, daqueles esquálidos bairros de lata dos primeiros anos do século passado.

Excepção cultural

Atenção às conversações EUA/UE sobre a Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento, que o lado europeu logo encarou como uma oportunidade.
É sabido que os dois parceiros têm profundas divergências em relação ao cinema, audiovisual e cultura, à propriedade intelectual, às indústrias agroalimentares e aos OGM (organismos geneticamente manipulados).
Em relação à cultura, os europeus têm defendido que os bens culturais não são mercadorias como as outras, e existem apoios à diversidade – consagrados na Convenção da UNESCO sobre Diversidade Cultural – que urge garantir. Em Maio, durante o Festival de Cannes, o produtor americano Harvey Weinstein e, depois, o presidente do júri (Steven Spielberg), fizeram a defesa da excepção cultural – Spielberg mesmo na cerimónia de encerramento. O mesmo fizeram os irmãos Dardenne e dezenas de cineastas europeus – mas também a neozelandesa Jane Campion, o brasileiro Walter Salles e o americano David Lynch – através de uma petição pública.
Entretanto, o que faz a Comissão Europeia? Durão Barroso chama “reaccionários” aos franceses por se recusarem sequer a discutir o assunto e o comissário para o Comércio, o belga Karel de Guchtinsistem, mantém a questão na agenda negocial. Há umas semanas, uma delegação de cineastas foi recebida por eles. No final, o realizador francês Costa Gravas disse que Barroso era “um homem perigoso” e Lucas Belvaux acrescentou que “é difícil acreditar que esteja de boa fé”. Mas o romeno Radu Mihailenu foi ainda mais longe: “Ele [Barroso] quer deixar a Comissão mostrando a sua boa vontade com os Estados Unidos. Deve ter aspirações a secretário-geral da ONU, como toda a gente sabe”.

Paulo Teixeira de Sousa
[O autor escreve segundo a anterior norma ortográfica]


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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