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Um momento exemplar

Aconteceu um daqueles momentos mágicos que algumas vezes surpreendem o nosso quotidiano: um grupo de professores aposentados e duas jovens ex-alunas partilharam connosco memórias e perspetivas sobre a Escola. Um momento tão autêntico quanto comovente, que, mais uma vez, nos permitiu compreender como vivemos num país à procura de encontrar um destino.

Naquela tarde de sol, em que nos recordaram o Portugal dos filhos de pais incógnitos, compreendemos como é insuportável ter de viver numa terra onde a discricionariedade jurídica é uma fonte insuportável de injustiça.
Nessa mesma tarde, em que nos mostraram como os seminários católicos foram a rota de fuga dos que com dez anos de idade tinham por opção amanhar as courelas e/ou emigrar, compreendemos também que o futuro da maioria dos nossos jovens não poderá ficar dependente nem da caridade, nem da lotaria do Natal ou de um qualquer jackpot. É que o Portugal do português suave, do jardim à beira mar plantado e dos salamaleques provisoriamente subservientes – onde, à falta de tanto eletricista e serralheiro desempregados, nem todos podem ou devem ser doutores – está aí. Um Portugal que temos vindo a recusar ao longo dos últimos quase 40 anos, numa luta que, sejamos justos, apesar de todos os percalços e contradições, esteve na origem da afirmação de um país diferente: os progressos em domínios como a saúde pública, a escolarização de crianças e jovens, as infraestruturas ou, entre outros, o acesso e a produção de bens culturais, falam por si.
Neste sentido, os discursos das duas jovens mostraram-nos, pela forma e pelo conteúdo, como nós, professores, não fomos tão ineficazes quanto alguns nos querem fazer crer. A lucidez desses discursos tocou-nos fundo.
Não podendo equiparar-se a discursos épicos sobre a importância da Escola nas suas vidas, não deixaram de nos mostrar a existência de um espaço humano e paradoxal onde tiveram a oportunidade de viver algumas experiências tão interessantes e significativas que, segundo elas, acabaram por ser determinantes naquilo que hoje são e naquilo que hoje fazem.

Sabemos que nem todas as memórias das escolas depois do 25 de Abril se equiparam àquelas, mas ainda assim não podemos continuar indiferentes ao discurso de depreciação do trabalho dos professores que hoje se produz a coberto dos resultados dos exames, quanto mais não seja porque é um discurso que ignora ostensivamente e afronta quer os últimos bons resultados obtidos pelos alunos portugueses em provas de aferição internacionais, quer o investimento em intervenções e ações meritórias que não são objeto de qualquer tipo de publicitação.
Infelizmente, esse discurso não começou com este governo, como foi tão emotivamente recordado pelas intervenções de dois professores presentes, aposentados à força para não viverem o drama de Sísifo que o episódio burlesco da avaliação de desempenho docente desencadeou.
Conhecemos testemunhos de bastante gente que vincula um tal episódio à decisão magoada de solicitar a antecipação da reforma, mas, mesmo assim, não deixamos de nos sentir profundamente tocados pelo modo como, por vezes, a voz daqueles dois homens maduros se embargava e os seus olhares se ausentavam. “Eu até achava que a avaliação seria necessária”, confessava um deles, “o que não suportava era aquela avaliação inútil, absurda, redundante, que por isso mesmo era uma avaliação humilhante”.
A sensação que tivemos, pela primeira vez, foi que a aposentação daqueles professores, de acordo com aquelas circunstâncias, constituía uma (der)rota que se associava a uma espécie de fuga. Uma fuga que, afinal e ainda, se vivia de forma amarga, até porque, como um deles lembrou, nem a renovação do corpo docente se conseguiu, como seria de esperar, com a saída massiva dos professores que se aposentaram.

Num tempo em que se esboroa a Escola Pública, em nome de uma contenção da despesa que, até hoje e pelos vistos, só tem vindo a tentar conter a democracia, aquela sessão foi para nós um momento exemplar, pelo modo como nos permitiu compreender como a Escola, pesem as suas contradições e vulnerabilidades, é um arado sem o qual não é possível lavrar o campo onde queremos semear a democracia e o bem-estar como um direito que todos podem e devem usufruir. Foi um momento exemplar, também, pelo modo como revelou as consequências de uma governação que deixou à solta, sem rédeas, a ganância e a mais absoluta indiferença face aos outros, à sua sorte e ao seu sofrimento. Foi, finalmente, um momento exemplar porque nos ouvimos, quebramos o nosso isolamento e nos reconhecemos como homens e mulheres que tanta coisa têm em comum.
Por isso é que o belíssimo conto com que o António Mota nos brindou, A Primeira Bata, merece ser evocado.
É que aquela primeira bata podia ser a bata de muitos de nós. Revimo-nos, por isso, na ansiedade da espera por uma bata que só chegou na véspera do começo da escola, num outubro cada vez mais distante. Revimo-nos também, e entre outras coisas possíveis, na nostalgia de um momento da infância, onde todos pudemos ser crianças, ainda que alguns efemeramente. Esse odor de humanidade que perpassou pela sala foi tão intenso que, porventura, muitos de nós se esqueceram do significado de uma bata, imaculadamente branca, que ao obscurecer as desigualdades contribuía para alimentar a ilusão de que a Escola era um espaço de igualdade, quando não era, em vez de ser um espaço de equidade, que ainda está a tentar ser.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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