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Os exames e a ereção da inteligência

Ao ministro, sim, submetia-o a um rigoroso exame, para perceber o que leu e o que sabe, mas também o que faz às graves assimetrias que tornam a Escola remediadora e a distanciam da sua vocação e missão.

Falta, na expressão de Rubem Alves, uma “erecção da inteligência” a todos os níveis! Querem continuar, como se fosse possível, a meter “o mundo embrionário de amanhã nos cubículos convencionais de ontem”, avisou Alvin Toffler há 30 anos! “Velhas maneiras de pensar, velhas fórmulas, (…) por muito queridos ou úteis que tenham sido no passado, já não se coadunam com os factos”. Falta-lhes, por isso, uma “erecção da inteligência”, e porque lhes falta, conduzem o sistema educativo, agarrados a um passado de rotinas vividas. Ideologicamente, acreditam.
Pelo que vou pesquisando de investigadores e livres-pensadores, expurgando o que me parece menos sustentável, os exames nacionais dos 1º e 2º ciclos testemunham a ignorância de quem os decide. Ora, o Ensino Básico visa o alicerce, o lastro consistente sobre o qual deverão ser edificados os pilares do “conhecimento poderoso” – conceito de Michael Young que se refere “ao que o conhecimento pode fornecer e operar mais tarde”. Quanto mais frágil o alicerce, piores os resultados futuros, porque o alicerce dos exames não suporta os pilares onde deverão assentar os andares superiores do conhecimento. Justifica-se, até, no plano da economia.
James Heckman, Nobel em 2000, estudou o que significa no futuro cada euro investido nas idades mais jovens. É, por isso, que a mais notável e insubstituível ação dos professores dos primeiros ciclos é “ensinar a ver”, reforça o pedagogo Rubem Alves.
Daí que nessa etapa da descoberta devam prevalecer as perguntas das crianças e não as respostas que os adultos entendem que elas devem dar nos exames.
Mas esse inesgotável mundo dos porquês implica, obviamente, um novo sentido e mentalidade organizacional do sistema, da rede, do número de alunos por escola e por turma, a aceitação de que os professores não são dispensáveis por razões economicistas e uma clara diferenciação pedagógica que parta em direção à qualidade e ao sucesso, por oposição ao atual e dramático quadro de insucesso e abandono.
João Formosinho é claro: “É importante que haja ilhas de diferença no sistema educativo”, o que supõe a existência, também, de uma real e não mitigada autonomia organizacional e pedagógica. Tão evidente que custa aceitar que o decisor político não entenda!
Um recente texto de José Pacheco trouxe à colação a conceituada revista Science e um estudo intitulado “A Educação não é uma corrida”. Deborah Stipek trabalhou o seu estudo ao longo de 35 anos. Evidencia José Pacheco que a autora denuncia o facto de os jovens serem treinados para obterem bons desempenhos em testes, pelo que é aberrante uma educação centrada em resultados mensuráveis e em rankings. E acrescenta: “a maneira como a educação é organizada na actualidade faz com que potenciais vencedores do Prémio Nobel sejam perdidos mesmo antes da educação básica, já que o modelo de ensino massacra qualquer outro interesse que não seja o cobrado nos exames”. Nem mais!
Dei-me, entretanto, à leitura das 95 páginas, três capítulos e 63 itens – afora dezenas de alíneas e anexos – da Norma 02/2013 do Júri Nacional de Exames (JNE). Uma paranóia que o Estado Novo não levou tão longe. Concluí que esta gente não sabe o que anda a fazer. Só lendo! O texto, que engloba os primeiros ciclos, resulta de uma abstrusa e retrógrada conceção do que deveria ser uma avaliação de base contínua. Trata-se do melhor caminho para o insucesso, o abandono e a exclusão, não o da descoberta e da formação com rigor, qualidade e excelência. Reproduzo uma passagem de um texto de Isabel Baptista que sintetiza esta matéria:
“A Escola é vida com tempo para pensar a vida, lugar de muitos encontros e de muitos começos. Lugar para aprender a sentir o mundo num despertar de fomes novas que nenhum visível sacia. Lugar onde nos preocupamos, e ocupamos, com os outros. É com este lugar de aprendizagem, de humanismo e de cultura, que nos identificamos e a partir do qual faz sentido estabelecer plataformas de confiança e de compromisso com outros actores”.
De “humanismo e cultura”, exato. Como resume Sérgio Niza, “a Escola não pode ser uma caixa fechada fora do mundo. Muito menos uma caixa fechada fora da cultura (...) é preciso pôr a cultura nas mãos das crianças”, e isso não passa por exames e por um adestramento determinado de forma heterónoma. O resultado dos exames do último ano letivo demonstra-o com toda a clareza. Saberá o ministro o que isto significa?
A ele, sim, submetia-o a um rigoroso exame multidimensional, com todas as normas do JNE, para perceber o que leu e o que sabe, se os exames se destinam a avaliar as crianças ou os professores, mas também para perceber o que faz, a montante do sistema, relativamente às graves assimetrias e dramas sociais e culturais que tornam a Escola remediadora, distanciando-a da sua vocação e missão. 

André Escórcio


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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