À tradição de normativização extensiva só faltava a austeridade cega e desqualificante, apoiada por uma espécie de cibertaylorismo, para sofrermos mais ainda com o autoritarismo administrativo que corrói tanto a educação quanto a democracia.
Ao serem colocadas ao serviço de políticas de erosão do Estado Social e da provisão da educação pública, a austeridade e a respetiva imposição, unilateral, de cortes radicais no orçamento da educação só são possíveis através de processos centralizados de decisão política e de aparelhos de administração igualmente centralizados. No caso da educação portuguesa, isso significa, quase sempre, (re)centralização política e administrativa, não obstante a manutenção da retórica, socialmente desacreditada, do “reforço da autonomia das escolas” – escolas que desapareceram do discurso político e legislativo, por força do seu agrupamento centralizador-racionalizador ou mesmo da sua extinção, restando agora a lógica gestionária das chamadas “unidades orgânicas”. Só o poder central se revela responsável e vigilante na subordinação geral a um quadro de racionalidade económica, técnico-instrumental, “modernizando” o sistema, “agregando” agrupamentos e escolas não agrupadas, “racionalizando” o currículo, “requalificando” os “recursos humanos”, procurando “ganhos de escala” (por exemplo aumentando o número de alunos por turma), encerrando cursos superiores sem “empregabilidade” (no exato momento em que o desemprego jovem é altíssimo).
A governação da educação, paradoxalmente sob o signo do rigor e da exigência, revela uma irresponsabilidade, uma falta de cultura pedagógica e um facilitismo na adoção de medidas educacionalmente seletivas que nos farão recuar muitos anos, até mesmo quanto aos indicadores internacionais que o poder político tanto aprecia. Num país onde, apesar das aquisições notáveis das últimas décadas, não existe uma retaguarda educativa e sociocultural capaz de resistir a situações de privação de recursos, à introdução de novas desigualdades, ao rigorismo deseducativo, há que temer o pior. Entretanto, o quotidiano das escolas é vivido em sobressalto, em permanente insegurança ontológica, sob injunções sistemáticas e controlos informáticos de tipo “panóptico”. Abundam os sistemas e as plataformas que reforçam o controlo burocrático do centro sobre as periferias, instituindo uma hiperburocracia altamente formalizadora e racionalizadora, que muitos confundem, ingenuamente, com desmaterialização desburocratizante e eficiente. Para incentivar a liberdade das escolas e desenvolver a sua autonomia (segundo o ministério), são publicados despachos normativos que, a cada ano, tudo estabelecem ao detalhe e de forma objetiva. A microgestão asfixiante foi ao ponto de ressuscitar o velho “LAL” (circular de lançamento do ano letivo), já entretanto aplaudido por alguns, face ao seu caráter prático e organizado tão ao gosto da tradicional aquiescência ativa de alguns e da alienação de feição pragmatista de muitos.
Em 1985-86 analisei o LAL de então, num total de 260 páginas e compreendendo 175 referências normativas, mais 28 impressos para utilização nas escolas. Para 2013-14, o formato é eletrónico, compreendendo 249 páginas e mais de meio milhar de normativos a título de “suporte legislativo”, bastando um simples clique para aceder a cada um deles. Aqui se inclui a organização do ministério, o regime de administração dos estabelecimentos, a organização das unidades orgânicas, alunos, ofertas formativas, planos e gestão curricular, modalidades de ensino, metas curriculares do Ensino Básico, programas e projetos, recursos humanos, mobilidade do pessoal docente, créditos, área administrativa e financeira/gestão financeira da escola e, em anexo, conceitos jurídicos e aplicações informáticas: “Compras MEC” para procedimentos aquisitivos centralizados, “Sistema Interativo de Gestão de Recursos Humanos da Educação” (SIGRHE), “Sistema de Informação do Ministério da Educação e Ciência”, “Sistema Nacional de Gestão de Turmas” (Sinaget). Eis a Administração Escolar em todo o seu esplendor; à tradição de normativização extensiva, de “sabor colonial”, só faltava a austeridade cega e desqualificante, apoiada por uma espécie de cibertaylorismo, para sofrermos mais ainda com o autoritarismo administrativo que corrói tanto a educação quanto a democracia.
Licínio C. Lima
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