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O verdadeiro combate

Há ideias que impregnam toda a discussão minimamente séria sobre o tempo em que vivemos. Não porque estejam inerentemente subjacentes aos verdadeiros problemas da sociedade contemporânea, mas porque têm um poder algo hipnótico, e sobretudo porque reduzem os problemas a um conjunto de causas que, sob a ótica dos que detêm o poder, são mais consentâneas com os seus interesses económicos, convicções religiosas e conveniências políticas.
Discute-se à exaustão as implicações da crise financeira, que em 2008 se alastrou por todo o mundo, sem nunca se discutir as suas verdadeiras causas e as ilações que dela se devem extrair. Somos constantemente confrontados com medidas que visam mitigar os efeitos da devastação causada por esta crise, porém, praticamente nada sabemos sobre os mecanismos de regulação dos mercados financeiros que se impõe implementar e sobre o absolutamente necessário processo de depuração intelectual que se exige para desmascarar os gurus da desregulação dos mercados que por algumas décadas dominaram o pensamento universitário das cátedras de economia e a administração de universidades de influência.
Em suma, discutem-se incessantemente as implicações da crise na economia, mas não as suas causas e as suas consequências para as pessoas. Pensa-se somente em termos de soluções que potencialmente venham mitigar os efeitos da crise, e nada de mais sério se pode discutir, pois temos a crise à porta, e ela exige respostas imediatas. A esta indigência intelectual somam-se alertas sucessivos sobre o perigo de se hostilizar o mercado, cujos ouvidos são muito sensíveis e ficam muito facilmente irritados com qualquer crítica ao seu modus operandi (na verdade, disfunção). Mercado que é muito reativo e que responde imediatamente com o aumento das taxas dos juros a cobrar sobre as dívidas.
Naturalmente, neste contexto, há pouco espaço para se discutir como o empreendedorismo hodierno viciou os seus agentes na lógica do lucro fácil e imediato, em detrimento do processo de investigação e desenvolvimento de ideias, produtos e métodos de produção mais eficientes e menos nocivos ao ambiente. Não há praticamente espaço para se discutirem os rumos da sociedade, para se repensarem as estratégias que visam reverter ou mitigar os males que a afligem e, muitas vezes, parece que ela sequer faz parte do debate e não é mais do que o cenário de ação das forças do mercado. Mas é óbvio que há problemas que são muito mais urgentes do que a crise dos lucros dos manipuladores do mercado financeiro internacional. Em particular, adiar a resolução dos problemas da fome, das doenças, da pobreza e da educação por conta da crise financeira é simplesmente inaceitável. Há que apoiar e fortalecer todos as instituições e atividades que tenham como objetivo resolver a médio prazo, e a mitigar no curto prazo, o problema da pobreza nas suas várias vertentes. E, naturalmente, não serão os mercados a fazê-lo, ainda que ocasionalmente os seus agentes patrocinem ações de assistencialismo com fins políticos e mediáticos.
Os problemas da fome e da pobreza são demasiado importantes e exigem uma ação concertada a nível local e internacional e a sua resolução não pode ser deixada à mercê de forças que não tem como objetivo a sua resolução. Como é bem sabido, a ideia de que a repartição do “bolo” se faz natural e automaticamente depois de o fazer crescer, não passa de um artifício retórico desprovido de substância histórica. Para se alterar a paisagem social da desigualdade, há que se ter políticas específicas de harmonização de salários, redução de privilégios acentuados, implementação de programas educativos e formativos abrangentes e prolongados, extinção do hábito da dependência de subsídios sociais – que só podem ser temporários e, invariavelmente, concedidos em troca de trabalho – e o desenvolvimento de projetos e atividades.
Outra questão que exige atenção particular e discussão aprofundada diz respeito ao perigoso declínio dos padrões educacionais, que coloca em risco um dos pilares fundamentais da nossa civilização.
A um nível mais funcional poderíamos apontar como uma das suas causas a disrupção da utilidade do processo educativo, dado a aquisição de conhecimentos e qualificações já não ser, por si só, uma vantagem decisiva no mercado de trabalho.
Mas, naturalmente, este é apenas um aspeto do problema. Há outras questões, que, por serem aparentemente invisíveis, não são discutidas de todo. Como, por exemplo, o declínio visível do interesse dos alunos e de muitos agentes educativos, do valor intrínseco da educação, da educação desligada das leis do mercado e dos seus aspetos puramente instrumentais. Da educação como fator de riqueza pessoal e cultural e alavanca do desenvolvimento da sociedade a longo prazo. Da educação como exercício socrático de análise, autoanálise e de escudo intelectual contra o sofismo dos modismos e de fundamentalismos laicos e religiosos. Porque, infelizmente, a educação só costuma ser tema de conversa quando estão em discussão questões puramente operacionais: processos de avaliação (alunos e professores), matérias a ensinar (quando parece que a lógica de introdução e supressão de disciplinas é regida exclusivamente pelo interesse em passar todos os alunos, melhorando assim as estatísticas), o ranking das escolas (que coloca uma pressão adicional para os professores darem boas notas), etc.
E há aqueles que supõem ser a educação um tema reservado exclusivamente aos especialistas com conhecimento teórico das várias teorias científicas sobre o processo de aquisição de conhecimento, das suas metodologias, etc.

E, claro, nas universidades, discute-se invariavelmente a implementação do protocolo de Bolonha e a panóplia de problemas que a harmonização dos mínimos curriculares a nível europeu (que frequentemente se transformam em máximos) pretende promover.
Porém, parece haver pouco interesse numa análise crítica dos seus pressupostos e consequências – muito particularmente, um dos aspetos mais nocivos e potencialmente perigosos do protocolo já se faz sentir e diz respeito a um virtual esvaziamento das nossas universidades depois dos três primeiros anos, dado que a uniformização promovida permite aos alunos concluírem a sua formação universitária em qualquer universidade aderente. Naturalmente, isto exige das nossas universidades respostas de qualidade que tornem os anos finais das licenciaturas mais competitivos e atraentes, o que requer investimento. Porém, o que se tem visto é o desinvestimento efetivo das universidades nos últimos anos. Esta situação ameaça perigosamente a estabilidade e a manutenção do nosso sistema universitário e, caso se mantenha, pode agudizar as desigualdades sociais, as assimetrias regionais e acelerar a desertificação territorial. Claramente, a discussão da educação enquanto elemento transformador e renovador da sociedade tem de ser discutido no contexto particular das preocupações sociais do nosso tempo e da nossa sociedade. E há que ter em conta que a problemática tem de ser discutida hoje num ambiente particularmente deletério e pouco generoso, dado que a destruição está na ordem do dia: dos valores do trabalho, da honestidade e da cultura; das instituições do Estado-providência, que após a Segunda Guerra foi o principal responsável pelo desenvolvimento gradual e pacífico de sociedades mais igualitárias e, consequentemente, mais estáveis e prósperas. Os agentes desta destruição são os arautos da desregulação dos mercados e as vozes que não se cansam de afirmar que o Estado-providência é demasiado caro e que os direitos dos cidadãos que interessam são os de criar riqueza, que muitas vezes é hipocritamente colada à criação de empregos, embora seja frequentemente multiplicada através da supressão de empregos. A verdade é que a defesa das ideias da social-democracia, principal responsável pela construção do sistema de valores que deu origem às sociedades mais justas e mais igualitárias, está em franco declínio. Não é novo o fenómeno de partidos políticos que ainda exibem nos seus nomes e emblemas as palavras socialismo, trabalhista e social-democrata, mas que há muito adotaram práticas essencialmente liberais e que não escondem, ou pelo menos não esconderam, o seu entusiasmo pela mecânica pura e dura do mercado. Há que sair da posição defensiva e retomar a discussão aberta e livre de preconceitos. O liberalismo económico, apesar de ser frequentemente pensado como uma força política moderada, liberta também frequentemente forças destrutivas que equivalem a revoluções encapotadas e, nalguns casos, engendram guerras, destroem economias inteiras, geram crises, desequilíbrios, fome e miséria, dando origem, ao longo do processo, a uma perigosa e radical ideologia da amoral.
No campo da educação, a agenda do liberalismo é perfeitamente reconhecível. Nesta visão de mundo, a educação é um luxo que as sociedades não podem e não devem apoiar. A educação deve ser vista como uma mercadoria disponível aos agentes que têm meios para pagá-la. Sob esta ótica, todo o equipamento e os agentes educativos devem ser mantidos e financiados pelos que podem pagar os seus serviços.
Não deve haver qualquer dúvida de que estas ideias representam, pelo menos na Europa, um retrocesso de várias décadas e que a sua adoção generalizada implicará uma força social de bloqueio à meritocracia, à inovação e à fluidez social. Não é difícil perceber que, a médio e longo prazos, estas práticas afetarão, inclusivamente, a livre iniciativa, o empreendedorismo e a criatividade dos agentes sociais, pois quadros dirigentes e decisores públicos e privados constituídos essencialmente por elementos das classes sociais mais privilegiadas não são necessariamente os mais capazes, os mais criativos, inteligentes e perseverantes. E, naturalmente, não se pode perder de vista o aspeto humanista e moral do debate. A riqueza gerada pela sociedade deve ser necessariamente distribuída por toda a sociedade, que deve ter instrumentos para adotar as melhores estratégias disponíveis para garantir o desenvolvimento harmonioso da riqueza material, cultural e espiritual que engendra. É nossa convicção que este desenvolvimento só é justo e concretamente sustentável se envolver toda a sociedade e almejar, acima de tudo, a estabilidade e a igualdade social. A saúde, a educação e o bem-estar geral dos cidadãos devem ser as principais prioridades da sociedade.

Orfeu Bertolami
Universidade do Porto, Faculdade de Ciências Departamento de Física e Astronomia


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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