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Toques de sinos na Terra de Miranda

Os sinos e as campainhas acompanham o Homem desde tempos imemoriais, tendo estado sempre presentes nos momentos mais importantes da sua vida. Produzindo determinados sons, com diferentes usos e funções, são indissociáveis dos ciclos vitais, não raro, assumindo funções rituais e usos mágicos.

Os sinos integram o conjunto dos chamados idiofones percutidos (porventura os de mais antigas origens), na medida em que os sons são obtidos graças a um batimento sobre o corpo vibrante com um objeto estranho ao mesmo. No entanto, as formas atuais dos sinos já muito pouco se identificam com as mais antigas ou primitivas, tal como as potencialidades sonoras (e musicais) que hoje lhes conhecemos.
Com o advento do cristianismo, aliou-se à sua função primordial de reunião e comunicação um carácter intrinsecamente sagrado, tornando-os autênticos porta-vozes de uma linguagem universal que se manteve até ao presente. O que implicou, naturalmente, a criação de um processo de significados e significantes, de modo a operar a respetiva sacralização (não raro procurando desvanecer funções rituais de evidente origem pagã), sobretudo a partir da altura em que se tornou imperativo congregar as comunidades em torno dos respetivos templos, bem como manter informadas as pessoas sobre os seus deveres e obrigações religiosas, sobretudo os tempos/momentos de oração. Porém, importa ter presente que os sinos não foram inicialmente aceites como símbolos do cristianismo, sobretudo devido ao facto de na Grécia e em Roma estarem profundamente associados a rituais pagãos e a práticas seculares.

Origem dos sinos

Não é tarefa fácil a referência precisa à origem dos sinos, sendo frequentes as divergências entre autores e estudiosos da matéria. Os mais antigos exemplares conhecidos são de origem chinesa e datam do segundo milénio antes de Cristo, sendo muito escassos os documentos que permitam recuar mais no tempo. De facto, apesar da reconhecida antiguidade do seu uso, em funções religiosas ou em contextos lúdico-profanos, os espécimes conhecidos apresentam formas muito rudes e sons imperfeitos. São de referir, ainda, espécimes de origem assíria, reportados a cerca de 800 a.C., bem como alguns exemplares de origem egípcia e grega remontando a vários séculos a.C. O uso dos sinos no Antigo Egipto esteve intimamente associado ao culto de Osíris. E Moisés, cuja educação decorreu entre a classe sacerdotal egípcia, foi o introdutor dos sinos nos cerimoniais da religião judaica. A descoberta de espécimes mais evoluídos provenientes dessas civilizações foi surpreendente, na medida em que apresentam uma “forma elaborada e modos de afinação” que permitem presumir tratar-se de “instrumentos pertencentes a um estado avançado de prática musical” (François-René Tranchefort), resultantes de um consideravelmente longo processo de evolução e refinamento em termos organológicos. A chegada dos sinos à Europa registou-se através de Bizâncio e a primeira notícia da sua utilização refere-se a Nola, na província de Campânia, na Itália. De facto, a instalação de sinos nos templos cristãos tem vindo a ser atribuída a S. Paulino (353-431), bispo de Nola, que no ano da sua morte mandou instalar vários tintinabula de diferentes dimensões, feitos a partir de folhas de cobre e de estanho, com a função de comunicar aos fiéis o distinto conteúdo das ecclesiae. Mas a atribuição deste pioneirismo a S. Paulino não é rigorosa, na medida em que existem testemunhos sobre a colocação de sinos em cavernames colocados nos adros da igreja, nos tetos dos templos ou numa árvore vizinha… Regressando a Nola, tratava-se de um conjunto de sinos dispostos sob a forma de carrilhão (tintinabulum).

Usos e funções

O uso dos sinos no culto cristão pode filiar-se na continuidade da utilização de instrumentos musicais, como os cornos de carneiro e as trompetas de prata citadas no Antigo Testamento para o anúncio de um festim, ou as campainhas de ouro mencionados no livro do Êxodo.
A palavra “sino” – que desde logo se confrontou com designações como nola, singram, clocca e campana – consta pela primeira vez (515) numa carta do diácono cartaginês Ferrandus ao abade de S. Eugípio. Tinha funções de chamamento, e na missiva refere-se como sendo um instrumento “consuetudo beatissima monachorum”, ou seja, costume dos monges santos.
A partir do século V, os sinos surgem referenciados nos mais diversos textos, sendo considerada primordial a função de chamamento. Esta função já surge evidenciada em textos italianos: a abertura dos mercados era anunciada pelo toque de sinos instalados nos respetivos edifícios e autores clássicos (Marcial, Plínio e Suetónio) referem o seu uso em balneários e templos. Embora alguns missionários e mosteiros beneditinos já utilizassem sinos no decurso dos séculos V e VI, a sua colocação nos templos cristãos foi decisivamente incrementada pelo Papa Sabiniano, que, por bula de 604, instituiu o toque de sinos nas horas canónicas. A bula papal decretava que os sinos dos mosteiros – no interior dos quais acabariam por se instalar oficinas e fundições, sobretudo nos beneditinos – deviam ser tangidos oito vezes ao dia, ficando tais momentos a ser conhecidos como “horas canónicas”, correspondendo sobretudo a orações cantadas, mas também a salmos, cânticos, hinos, lições, versetos e responsos. Significavam também, em plena Idade Média, pausas na jornada de trabalho dos monges, então os grandes impulsionadores da agricultura.
No Nordeste Transmontano, as horas canónicas foram designadas: Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Bíblicas, Completas, Matinas e Laudes.

Alterações organológicas

Foi longo o caminho percorrido pelos sinos tal como os conhecemos hoje, na forma adquirida na Holanda no decurso do século XVII. Terá sido a partir do século XIII que se passou a colocar os sinos no alto de torres instaladas com esse fim (campanários). De facto, embora o uso dos sinos nos templos cristãos tenha sido sancionado pelo Papa Sabiniano, só por volta do século XI é que se começaram a construir torres sineiras. A colocação dos sinos nos templos determinou algumas modificações de natureza organológica. Os primeiros apresentavam formas quadrangulares, mas, a partir do século VIII, com o abandono da utilização do ferro, os sinos começaram a ser fundidos em bronze e a adquirir formas redondas, evoluindo para dois tipos fundamentais: tipo taça, pouco profundo e desprovido de badalo, percutido de fora através de um martelo; e tipo profundo, cónico ou em forma de colmeia, com parede convexa de espessura uniforme e provido de badalo no interior – foi a partir deste, de maiores dimensões, que se evoluiu para o atual modelo esquilonado, considerado de origem holandesa. Importa referir que foi na época gótica que, na Europa Ocidental, o badalo se instalou definitivamente no interior do sino, determinando o tipo esbelto e de perfil estilizado, designado por tulipa ou esquilonado, que se impôs a partir do século XIV e que caracteriza a esmagadora maioria dos sinos dos templos ocidentais.

Inscrições e ornamentos

Num grande número de sinos da diocese de Miranda do Douro surgem inscrições epigráficas que, em geral, invocam Jesus Cristo, Nossa Senhora, Deus ou os santos padroeiros das localidades em cujos templos são colocados. As inscrições são constituídas por motivos ornamentais (que normalmente servem de separador entre as inscrições), bem como cruzes ou imagens, e geralmente apresentam-se nas zonas da terça e do meio-pé – de cima para baixo podemos distinguir num sino cinco áreas: ombro, terça, meio, meio-pé e pé, diferenciadas entre si por cordões ou bandas horizontais. Normalmente, as inscrições são determinadas no contrato firmado entre os fundidores e os sacerdotes, mordomos, confrades ou pessoas encarregadas de concretizar a encomenda. Uma das mais antigas em templos da Terra de Miranda, datada de 1626, está no sino da torre direita (vista de frente) da Sé Catedral: Sanctus Deus, Sanctus Fortis, Sanctus Et Inmortalis, Miserere Nobis.

Os toques de sinos

A musicalidade dos sinos depende de um grande número de fatores, tendo a qualidade da fundição do bronze uma importância decisiva. Os fundidores devem dominar as complexas técnicas da fundição, trabalho que – apesar dos avanços tecnológicos e do elevado nível dos conhecimentos científicos sobre a acústica dos sinos (área dominante da campanologia, ciência que estuda os sons dos sinos) – continua a ser considerado uma verdadeira arte. Atualmente, está bastante divulgada uma divisão dos sinos em dois tipos fundamentais: moderno e antigo. O sino do sistema moderno, apresentando o mesmo peso que o do sistema antigo, é mais baixo e mais largo na boca, sendo o respetivo som considerado mais claro e timbrado. Cada sino tem uma nota musical característica, determinada pela respetiva configuração geométrica e espessura da parte terminal do bojo ou curva na qual percute o badalo ou martelo. O timbre e o som de um sino são verificados por um analisador espectral eletrónico, obtendo-se o padrão de afinação pretendido através do recurso à rebarbagem mecânica do respetivo interior. De acordo com a tradição cristã, os sinos são afinados em cinco harmónicas: a nominal, a quinta da nota fundamental, a terceira menor da nota fundamental, a fundamental (nota da primeira oitava inferior ou abaixo) e o bordão (nota da segunda oitava inferior ou abaixo). Nasce, assim, um conjunto de sinos afinados, podendo ser utilizados individualmente ou combinando sinos de distintos sons e tamanhos (carrilhão). Um sino pode ser tocado de diferentes maneiras, considerando o movimento e o modo de percussão, que podem ter execução manual ou elétrica: sino imóvel, percutido com badalo interior (badalada) ou com martelo (martelada ou matraqueada); sino em movimento de vaivém (balanceado, dobrado ou bamboado) ou de rotação completa (volteado).

Toque das ave-marias. Prática puramente católica, consiste na recitação de orações ao som dos sinos, em três momentos muito importantes na vida das comunidades, com os sinos a desempenharem relevante papel de aviso: o toque da manhã, designado toque das Ave Marias; o do meio-dia correspondia ao Angelus; e o do fim da tarde, designado toque das Trindades. Eram todos iguais e consistiam em três grupos de três badaladas simples e compassadas no sino grande do templo.

Toque contra as trovoadas. Acreditava-se que o toque incessante dos sinos em dias de tormenta era eficaz para afastar relâmpagos e trovões. Segundo António Maria Mourinho, as gentes parafraseavam o som da tintanubrada ou tentanubrada (como era designado o toque): Reten-te, reten-te / Reten-te anubrada / Nun bengas tan cargada; Bai-t’a cargar / A la tierra de Sayago / A la tierra de Sayago. Este toque foi admitido e fomentado pela Igreja a partir do século XVI, de modo a contribuir para que as orações dos fiéis aplaquem “a ira d’Aquele que dá preceitos às tempestades e sem a vontade do qual nada acontece no Inverno”.

Toque litúrgico. Toque de chamamento para a missa, integra os toques de anúncio dos ofícios religiosos (horas divinas, ave marias, trindades, finados e defuntos) e constitui um apelo à reunião e participação da comunidade. No contexto das celebrações litúrgicas, a campainha substitui o toque do sino ou da sineta que antigamente estava suspensa da parede, no interior do templo.

Toque de oração. Numa pastoral dada em 3 de dezembro de 1750, o bispo Frei João da Cruz “recomenda o exercício da oração e manda que os párocos a façam em dias determinados ao povo congregado a toque de sino” (Abade de Baçal). Três anos depois, o mesmo bispo refere a necessidade de oração “pelo menos de um quarto de hora por cada dia do mês”, determinando que na igreja catedral “todos os dias (…) se dê sinal com o sino”.

Toque de repique. O toque repicado (também dito repiquete) acontece em praticamente todas as ocasiões festivas, sendo a duração muito variável. É um toque glorioso e de exaltação, puxando-se os sinos com cordas. Nas procissões, o repique festivo (a Molinera é o mais expressivo e popular) deve ser dado na igreja principal pelo menos à saída e à entrada da procissão e quando passe em frente de outros templos.

Toque das almas. No inverno (21h) e no verão (22h), faziam-se ouvir três badaladas espaçadas, apelando a que cada um, em sua casa, evocasse os entes queridos falecidos bem como as almas que estavam prestes a deixar o Purgatório.

Toque da extrema-unção. O ato é anunciado com cinco badaladas em cada um dos sinos (primeiro no grande, depois no pequeno) quando o sacerdote se prepara para sair para a casa onde se encontra o moribundo, seguidas do toque de repique da Molinera quando abandona o templo. Os cinco toques em cada sino representam as cinco chagas de Cristo e o repicado informa que o Senhor está na rua, o que é sempre uma ocasião de louvor e celebração.

Toques funcionais. Além do toque contra as trovoadas, registavam- se outros toques funcionais: para reunir o gado, para reunir o conselho da aldeia e para avisar da existência de fogo – este era um toque a rebate, do género do também usado em caso de ameaça ou perigo eminente para a comunidade.

Paisagem sonora em mutação

Com o decurso dos tempos, os velhos tocadores das aldeias deixaram de subir as normalmente íngremes escadas de acesso aos campanários – não raro, velhas estruturas de madeira que foram apodrecendo, dando lugar a degraus em tubo de ferro galvanizado, nada fáceis de vencer. Começaram, então, a usar-se cordas e correntes para possibilitar os toques mais vulgares a partir do solo (toques fúnebres ou de chamamento para a missa e pouco mais) ou a instalar-se sistemas elétricos (imobilizadores de badalos) com martelos de toques programados.
Os restantes toques que animavam a paisagem sonora em distintas ocasiões estão praticamente esquecidos, permanecendo na memória coletiva das gentes em quase completo silêncio. É um património adormecido, a caminho do esquecimento, que nos remete para a justeza das palavras de Michael S. Rose: “Uma igreja não deve ser apenas vista, mas também ouvida”. Algo que as modernas tendências da arquitetura parecem estar a ignorar...

Mário Correia
Centro de Música Tradicional Sons da Terra

Texto adaptado de «Toques de Sinos na Terra de Miranda» (Âncora Editora, 2012), do mesmo autor, que inclui o CD «Dicodera-Dicodan. Toques de Sinos na Terra de Miranda» (Sons da Terra, 2008).


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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