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A minha terra

Há muitas zonas de Portugal cuja beleza tem de ser reconhecida. Mas para mim, que sou um pobre de deus que fica meses a fio a ansiar pelas primeiras chuvas, o triângulo Viana do Castelo, Ponte de Lima, Valença é inigualável.

Hoje escolhi falar da minha terra aos meus (infelizes) leitores. Da minha terra em sentido lato, o triângulo (mal ajambrado) que tem os ângulos em Viana do Castelo, Ponte de Lima e Valença, e da minha terra em sentido estrito, a freguesia de Covas, no concelho de Vila Nova de Cerveira. Se bem que tenha umas vagas minas (fenícias, romanas?) de estanho e umas menos vagas de volfrâmio, talvez só se possa verdadeiramente gabar do seu rio, o Coura, um afluente do Minho (mesmo junto da foz, em Caminha). O Coura é um rio como o do poema de Fernando Pessoa: o rio da minha aldeia. Nenhum outro se lhe equipara: nadar nele, pescar nele (trutas e bogas), ficar sentado na margem a vê-lo correr, ora castanho (opaco), ora cristalino (transparente), é das coisas mais agradáveis que por lá se podem arranjar.
Já houve tempos em que a minha terra em sentido estrito também foi um castanheiro, duas cerejeiras, uma escola primária, uma fonte e um riacho ao fundo do recinto da escola, a égua do senhor meu pai, que o meu irmão mais novo e eu montávamos todos os entardeceres para a levarmos a beber lá, a chuva persistente do outono e do inverno, os caminhos cheios de lama, o suor do verão em cima da bicicleta até S. Martinho de Coura ou Vilar de Mouros, uma bola aos saltos num campo de futebol que os jogadores (improvisados) dividiam com tojos e buracos, um jogo de sueca a seguir ao almoço, a visita da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, os livros lidos à noite (Régio, Pessoa, Oliveira, Brandão, Sá Carneiro, Eça, Camilo, etc.) na cama (eram as férias), as estrelas (todas) no céu, ofuscadas pela Lua quando se olhava diretamente para o leite dela, um cometa que passava, a infância e a adolescência a fugir sem que se desse conta disso, a certeza de uma perda que era filha de uma falsa nostalgia, hoje verdadeira. E a tristeza da pobreza (paz pobre, chamou- lhe Carlos de Oliveira) dos aldeões: mourejar sem interrupções (primavera, verão, outono, inverno) para sobreviver à custa do porco, do milho e das batatas; entrar e sair das minas com os pulmões mordidos pela silicose; beber aos fins de semana até esquecer as penas dos dias de trabalho; tocar concertina (sublimemente, como o Nelson Vilarinho), cantar ao desafio e dançar no terreiro na margem do rio; ir à missa e não perceber nada do latim nem das requintadas homilias do padre Narciso; entrar em rixas sem razão; perder a cabeça por um palmo de terra ou um rego de água. A nossa casa coberta de hera, as árvores de fruto do quintal, galinhas, patos, perus, coelhos. A quinta até ao rio: correr por ela até molhar os pés. Tirar a água do poço dando à manivela. Ir à adega com o sibilante e cítrico candeeiro de carbureto nas noites de verão para recolher uma garrafa de cidra asturiana comprada pelo meu pai em Tuy ou Vigo. Calcorrear as matas com os amigos, o rio a rumorejar algures, sempre o rio. Subir a Serra de Arga para ir às festas de Arga de Baixo ou do Meio (já não me lembro bem de qual) e ao S. João. Atravessar o rio para seguir por entre pinheiros até Mentrestido, onde ficava a casa dos meus avós (agora de uma tia), uma casa com uma espécie de estufa atulhada de fetos e umas casinhas no telhado.
Alarguemos agora o ponto de vista. Há muitas zonas de Portugal cuja beleza tem de ser reconhecida: certas zonas de Trás-os-Montes, das Beiras, do Barrocal, o Alentejo todo (mar e terra), os Açores (a Terceira, minha paixão). Mas para mim, que sou um pobre de deus que fica meses a fio a ansiar pelas primeiras chuvas, aquele triângulo é inigualável. Nos bons anos de invernia, a chuva cai (ou caía) ininterruptamente durante dias a fio enchendo rios, ribeiros e alagando campos: um gosto. É certo que esta minha propensão líquida, ganhou, desde a infância, contornos outros, introduzindo-se no meu olhar uma cópia de elementos literários (também em sentido lato) que me levaram a atribuir à chuva potencialidades que provavelmente não são reais. Ou melhor, podem não ser reais para os outros, mas para mim são: quando chove, parece-me tudo mais limpo, mais fluido, é uma antecipação de regeneração, de renascimento, que gente muito talentosa (veja-se T.S. Eliot, por exemplo) soube utilizar com uma carga simbólica muito poderosa. Tudo isso importa, mas a verdade é que aquilo que nunca esqueço é uma toalha de praia posta a secar na corda da roupa de um quintal em Valença, lavada durante a noite pela chuva estival: passá-la pelo corpo depois de seca pelo sol da manhã é uma experiência única. Assim como passear pela margem do Rio Lima (a direita, de preferência) em Viana do Castelo ou em Ponte de Lima numa tarde chuvosa de outono: entre-se depois no Natário (Viana) ou no café da praça de Ponte de Lima e fica concluído um dia glorioso. Como dizem os ingleses. De Viana, bela cidade de burgueses (seiscentistas, setecentistas), falarei mais propriamente em próxima crónica.

Salvato Teles de Menezes


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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