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As leituras são como as cerejas

Tentei estabelecer diferenças e afinidades entre estes três livros, todos datados. Dois dos anos setenta, um dos anos noventa. Nos três se procura saber como nos posicionamos – nós, portugueses – enquanto hóspedes mais ou menos tolerados “sob céus estranhos” 

A pátria deixou de olhar Rentes de Carvalho de viés. Antes tarde que nunca. Da última vez que falámos, há muitos anos, andava queixoso. A Holanda reconhecia-o, a pátria, rancorosamente, excluía-o. Agora, não só o encara como lhe pisca o olho. Em boa hora alguém se lembrou de reunir a sua obra, dando ênfase a um percurso literário que culminou com o justo prémio de “biografia” da APE e abriu espaço à surpreendente e justa recuperação a que a comunidade assiste. Não consegui adquirir às primeiras «Com os Holandeses» (Quetzal, 4ª ed.), livro pelo qual nutria forte curiosidade. Por esta ou aquela razão, sempre me escapou.
A menina da livraria lamentou e alvitrou: Já não temos. Mas do Rentes ainda há aí «O Rebate».
Do Rentes? Assim, de cor e a seco? É a glória, homem. Que mais pode desejar um escritor, para aferir a sua popularidade, do que ser tratado familiarmente pela empregada da secção de livros do centro comercial, sem recorrer à cábula do computador?
«O Rebate» conhecia-o do tempo da Escritor.
O que eu queria mesmo era comprar
«Com os Holandeses». Fui fazer negócio a outra casa e já só apanhei o último exemplar disponível.
Ferreira Fernandes abana o capacete todos os dias no Diário de Notícias. Ao contrário de outras prosas diárias a ressumarem enfado e enxutas de significação, em trânsito por aí, naquela ponta de lança do decano matutino, ressaltada a bold, a festa é permanente. Mais do que o simples prazer da prática da crónica bem esgalhada, sintética e de humor acutilante (já o disse algures e confirmo-o sem ponta de remorso), aquele refúgio angular alberga um mestre da short story, e isso tornar-se-á evidente quando o jornalista escritor um dia reunir em livro as melhores peças do acervo acumulado. A qualidade literária dos “pequenos contos”, aparentemente fruto da atitude prazenteira e descontraída de quem os escreve ao abordar um quotidiano tão problemático como vai sendo o nosso, merece a tentativa.
Em todo o caso, não foi este observador perspicaz da espuma dos dias (Boris Vian), de sarcasmo fino e instinto felino a sintetizar assunto, quem me fez companhia na leitura de «Os Primos da América» (Tinta da China, 2ª ed.). Foi o jornalista de investigação.
Aí, o mergulho é na América da emigração portuguesa, do trilho árduo da adaptação à coroação das vidas bem sucedidas, e de uma pesquisa da raiz lusitana nessas paragens assente em bibliografia especializada. Ao gozo da viagem cola-se o escrúpulo da indagação in loco. Junte-se o inventário de memórias, a oralidade remanescente na peugada de vestígios (nomes, ruas, lápidas, instituições, firmas, oportunidades) pelo Havai, Los Angeles, Nova Bedford, Newark, e encontraremos o historial de uma saga bem documentado e de leitura extremamente aliciante. Dois euros, foi quanto tive de pagar no mercado livreiro informal por «É proibido apontar» (Estúdios Cor, 1ª ed.), de José Rodrigues Miguéis.
Tentei estabelecer diferenças e afinidades entre estes três livros, todos datados. Dois dos anos setenta, um dos anos noventa. Nos três se procura saber como nos posicionamos – nós, portugueses – enquanto hóspedes mais ou menos tolerados “sob céus estranhos” (Ilse Losa). Acabei por excluir do cotejo o livro reeditado de Ferreira Fernandes, bem comportado e bem intencionado. Rentes e Miguéis são bem mais contundentes, tanto na denúncia de como os outros nos veem como no modo como por nós são vistos. E se, para os estrangeiros (cliché americano), a imagem do português é a do “indiferente à cor da pele sob que Vénus se encarna, esperto e chicaneiro mas destituído de real finura, enfim, o campónio que se fez ao mar para tirar o ventre de miséria” (Miguéis), ou (cliché holandês), “cá temos mais um judeuzinho sujo!” (Rentes de Carvalho), os escritores portugueses retaliam e americanos e holandeses saem da refrega com algumas nódoas negras. A América citadina e cosmopolita que Miguéis, numa avaliação premonitória, já entrevia nas mãos de um matriarcado urbano destemido, viria a resvalar para um estilo de vida como o descrito na série televisiva “O Sexo e a Cidade”; a Holanda de Rentes rendeu-lhe meio milhão de exemplares vendidos porque os holandeses gostam de si mesmos assim, pensando talvez o nosso autor que os desmoralizaria descobrindo-lhes as carecas na sua perspetiva de europeu meridional (a malcriadice dos jovens, o desprezo pelos velhos, estruturas familiares marcadas pelo vício do dinheiro, etc.). Ora eles nem amuaram, quanto mais zangarem-se. Provavelmente, o que o olhar latino enxergou como defeitos, tomaram-no eles por virtudes. E até compraram. Espontaneamente e sem perversidade mercantil, Rentes acabou por lhes proporcionar um bom negócio. A que mais poderiam eles aspirar quando continuam fiéis ao lema de zakelijke aanpak, isto é, tudo à maneira do comércio? E o português? Ainda projetará o figurino de chico esperto medíocre, trinta e nove anos de democracia depois?

Júlio Conrado


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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