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Cinema americano em força

Como pensar a maneira de o cinema de hoje trabalhar a relação entre as certezas da injustiça, as incertezas da justiça e os cálculos da justeza?
Jacques Rancière, “Os intervalos do cinema” 

As estreias simultâneas de “The Master” (Paul Thomas Anderson), “Lincoln” (Steven Spielberg), “Django Unchained” (Quentin Tarantino) e “Zero Dark Thirty” (Kathryn Bigelow) trouxeram Hollywood novamente para primeiro plano. A época dos Oscars garante a colheita de filmes mais sérios do que Hollywood nos tem habituado. O nível do cinema de entretenimento é de tal maneira baixo que os filmes que entram na competição (os adultos, como dizem os americanos) são muito raros. Para chegar a “Lincoln”, Spielberg teve de fazer “Indiana Jones 4” e “War Horse”, Anderson teve de produzir ele próprio, Bigelow de comer o pão que o diabo amassou antes do sucesso surpresa de “Hurt Locker”, e Tarantino não tem a respeitabilidade nos States que tem na Europa. Mas os filmes aí estão, e é com coragem que enfrentam a história do seu país, de modo edificante, mas complexo (Spielberg), onírico, mas seco (Anderson), divertido, mas brutal (Tarantino), jornalístico, mas problemático (Bigelow).
Complexidade de “Lincoln”: o presidente mais respeitado da história dos EUA obrigado a manigâncias pouco gloriosas e o preço a pagar no final, para levar a cabo ao mesmo tempo o final da guerra e a aprovação da emenda da Constituição que levaria ao fim da escravatura. Uma deceção, segundo o historiador Joshua Zeitz, no site The Atlantic: os nomes dos congressistas que combateram a emenda foram mudados. Brutalidade de “Django”: o combate até à morte de dois escravos aos pés do seu proprietário (DiCaprio, absolutamente fabuloso), revelando um país completamente desregulado. E ao fim de mais de cem anos de westerns, aprendemos que o maior escândalo no Oeste era um negro montado a cavalo.
Por fim, “Zero Dark Thirty”: o mais polémico, a História contada quase na hora. Se Bigelow nos dá uma sequência genial (o assalto à casa de Bin Laden), não se poupa – e não nos poupa – a mostrar as cenas de tortura em Guantánamo (base militar em Cuba). E aqui, ao contrário de
Spielberg, não há um preço a pagar.
Em entrevista aos «Cahiers du Cinéma» de fevereiro, quando lhe referiram as críticas pelas cenas de tortura, Kathryn Bigelow respondeu:
“Duvidei que fosse haver controvérsia. É sempre penoso vermo-nos ao espelho para fazer exames de consciência. É talvez uma questão de educação através da imagem e da capacidade de ler um filme, de identificar um ponto de vista: o que é significante no filme passa menos pelo discurso do que pela realização. Se não estamos familiarizados com a linguagem cinematográfica, a interpretação perde a sua nuance e pode ser muito redutora e unidimensional. Na imprensa, simplificou-se a matéria do filme, as pessoas têm tendência a ver tudo a preto e branco, o bem e o mal. E a realidade é muito complexa. A tortura é um tema sujeito a debate nos EUA desde 2002, tema que o filme traz de novo para a ordem do dia e que continuará a ser debatido durante anos, sem dúvida”. Apesar destas declarações, a polémica sobre o filme cresceu. Alguns chamaram a Bigelow “Riefenstahl” e houve mesmo quem chegasse a falar em “Green Barrets”, de John Wayne.
Três senadores escreveram à distribuidora do filme para denunciar a ideia de que a tortura teria permitido encontrar Bin Laden, alegação que declaram falsa e perigosa, enquanto uma recente sondagem revela que uma pequena maioria dos americanos acha que a tortura é justificável no quadro de uma investigação. As cenas de tortura são filmadas com câmara ao ombro, alternado entre os agentes da CIA e o prisioneiro.
Se a posição da realizadora sobre a tortura é a da agente Maya, a protagonista, o filme é indefensável. Mas, quanto a mim, a posição da câmara separa-nos dela. Permanecendo no exterior, mas desconfortavelmente próximo da situação, o espetador fica com a objetividade necessária para julgar os métodos de interrogatório.
Há ainda quem pense que o cinema pode ser neutro? Seja qual for a vossa opinião, não percam o filme, porque é cinema do melhor.

Paulo Teixeira de Sousa


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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