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Impedir o assalto ao bem-estar e à democracia

Esta constitui uma das principais tarefas que temos de concretizar ao longo dos próximos anos, de modo a que os Finantial Times venham a ser, apenas, uma má recordação e não um pesadelo.

Uns anos antes do deflagrar da crise em que nos mergulharam a partir de 2008, ainda na primeira metade da primeira década deste século, podia-se ouvir e ver em alguns canais televisivos um spot publicitário a um jornal de referência mundial na economia e nas finanças que logo me pareceu carregado de um profundo significado que ultrapassava largamente o objetivo principal do mesmo. O tipo de voz que lhe dava vida contribuía de um modo exemplar para nos transportar para uma outra dimensão, oculta, da mensagem: We live in... a Finantial Times! A primeira ancoragem genética destes ‘tempos financeiros’ remonta à década de 70 do século XIX e foi designada por alguns autores – Karl Polanyi, Eric Hobsbawm e John Gray, entre outros – como laissez-faire, isto é, a ideologia do mercado livre que, sem qualquer sombra de hesitação por parte de quem a defendia na época, tinha o poder de se autorregular sem qualquer intervenção dos Estados. A segunda ancoragem podemos encontrá-la, decorridos exatamente cem anos, com Richard Nixon, aprofundada com a eleição de Ronald Reagan e Margareth Thatcher para mandatos de uma década profundamente influenciados por duas figuras centrais no ressurgimento da referida ideologia de mercado livre:
Milton Friedman e Friedrich Hayek.
O Consenso de Washington, celebrado em 1984, e que envolveu a Reserva Federal dos Estados Unidos da América, que o patrocinou, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, veio selar o que passou a ser designado por neoliberalismo – ressemantização do conceito de laissez-faire – e que nunca mais deixou de tutelar as políticas económicas e financeiras globais até à atualidade. Essas políticas passaram a ser designadas por ajustamento estrutural daqueles países, que, por um motivo ou outro, passaram a ser o alvo privilegiado do capital financeiro internacional, verdadeiro poder, aparentemente sem rosto, que define as políticas dos Estados e os destinos dos povos. De acordo com Hobsbawm, em «A Era dos Extremos» (1996):
“Aqueles de nós que viveram os anos da Grande Depressão ainda acham quase impossível como é que as ortodoxias do puro mercado livre, na época tão completamente desacreditadas, vieram mais uma vez a presidir a um período global de depressão em fins dos anos 80 e 90, que, mais uma vez, foram igualmente incapazes de entender ou resolver.”
Esta perplexidade é tanto mais relevante quanto se sabe o trágico desenlace da primeira experiência de laissez-faire que a humanidade conheceu, “tendo terminado nas trincheiras da primeira guerra mundial” (J. Gray, «Falso Amanhecer», 2000) e culminado com a devastação provocada com a Grande Depressão, primeiro, e por fim, com a segunda grande guerra.
Acresce que “nos anos 80 e início dos anos 90, o mundo capitalista viu-se novamente às voltas com problemas da época do entre guerras que a Era do Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa, depressões cíclicas graves, o confronto cada vez mais espectacular de mendigos sem tecto com luxo abundante, entre rendimentos limitados de Estado e despesas ilimitadas de Estado” (Hobsbawm). Ou seja, grande parte das condições que geraram a mais exemplar ‘casa dos horrores’ alguma vez ‘construída’ na história da humanidade parece estarem a ser novamente reunidas, não sendo difícil imaginar que nos aproximamos perigosamente de uma situação de não-retorno particularmente explosiva e de consequências imprevisíveis. A ideia de uma democracia capitalista constitui um contrassenso, apesar da insidiosa propaganda que todos os dias nos invade, destinada a fazer-nos acreditar na possibilidade de tal articulação. Os discursos oficiais e aqueles que emergem quotidianamente nos órgãos de comunicação social são disso exemplo, esquecendo-se – ou serão ignorantes e inconscientes? – uns e outros que o ‘assalto ao bem-estar’ das populações se traduzirá a breve prazo no enfraquecimento, e até aniquilamento, da democracia. Tal como Gray claramente reconhece, “a democracia e o mercado livre são rivais, não aliados”, invetivando-nos a isolar “as regras do jogo do mercado da deliberação democrática e da intervenção política”. O diagnóstico está feito. Urge, pois, impedir que este assalto ao bem-estar e à democracia tenha êxito! Esta constitui uma das principais tarefas que temos de concretizar ao longo dos próximos anos, de modo a que os Finantial Times venham a ser, apenas, uma má recordação e não um pesadelo.

Manuel António Silva


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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