Página  >  Edições  >  Edição N.º 200, série II  >  Bom serviço

Bom serviço

A jovem que atende os clientes está de férias. O novo dono da microempresa continua mais algum tempo acordado, atendendo os primeiros fregueses. Com o olho treinado de padeiro que avalia a quantidade de sal e fermento necessários para produzir o pão que vende, ainda morno, de madrugada, todos os dias, escrutinou-me. Depois, desejou-me “bom serviço”, já eu estava a dar meia volta para sair, e não o mais comum “bom trabalho”.
Bom serviço, mas a quem?
As crianças falam; nós, adultos, ouvimos. Um serviço raro, que prestamos a crianças, numa escola. Os pais e as mães não trabalham, dizem elas. Alguns tentam a venda, outros fazem pequenos serviços. Uma das turmas tem crianças que vêm dos quatro cantos do mundo. Só as crianças ciganas nasceram no bairro. Continuam a viver no bairro, enquanto as outras estão de passagem, de dentro ou de fora do país, prontas para voltar a sair para destino certo ou incerto, reinventando o conceito de povo nómada.
Escolas implementam, pela mão da hierarquia distante, uma triagem cada vez mais feroz dos discentes. Afastam-se mais e mais da realidade heterogénea de uma qualquer comunidade de aprendentes, cultivam a ignorância e privam crianças e jovens da palavra e da emancipação. Pontualmente, preparam servos empregáveis.
Quem ficou pela escola básica sai do bairro, ou do país, procurando fazer valer os saberes não escolares; quem passou por uma formação mais longa e complexa coloca-se ao serviço das leis do mercado, concentrando, no território europeu, produtores de riqueza, reforçando bolsas de pobreza. Significa que pessoas que investiram, e nas quais se investiu, deixam o país, enquanto se investe na estratificação dos que ficam.
A retórica em relação à Escola mudou: deixou de se estudar para depois trabalhar, passando a diversificar-se para que todos ganhem condições de empregabilidade.
Mas são raros os colégios dos bairros caros, de condomínio, que “diversificam” a “oferta” entre “cursos gerais” e “cursos profissionais”, “diversificação” típica nas escolas dos guetos de realojamento e de renda social baixa.
Bom serviço... Mas a quem?
Na escola onde as crianças falam, os adultos organizam-se com elas. Mobilizam outros adultos para tratar do espaço da escola. Discutem seriamente o melhor ordenamento do recreio. Estas discussões constituem, às vezes, o início da possibilidade do desenvolvimento mediado de projetos em comum.
As crianças passam a ser acompanhadas por alguns dos professores, que se põem ao serviço delas, estimulando o seu processo de aprendizagem.
Em determinadas turmas, começa a ser possível discutir a própria organização do trabalho – nada de novo para uns; uma pequena revolução para outros.
Noutras turmas, surgem os primeiros projetos de escrita, através dos quais as crianças se apropriam da narrativa, fixando a sua própria história. Ganham consciência e capacidade para interpretar os fenómenos: da comunidade, da cidade, do mundo.
No bairro dessa escola, as pessoas que ficaram organizam-se, discutem, propõem soluções de reordenamento eficazes, simples, e executam-nas. O mediador passa o tempo a ouvir e a questionar. As pessoas refletem e tomam iniciativas. Líderes procuram impor-se e aprendem que não se substitui uma hierarquia por outra quando há quem esteja atento. Moradores de ruas diferentes encontram-se, alguns pela primeira vez. Discute-se tudo e procura-se um primeiro consenso. A equipa que medeia calcula, por experiência acumulada, que a sua presença será necessária durante quatro a cinco anos. Numa outra escola, de outro bairro, outras crianças discutem o bairro e interpelam os adultos. Querem perceber o porquê daquilo que veem e ouvem. Publicam e divulgam o que aprendem em jornais de papel e eletrónicos. Certificam as suas aprendizagens sem verem os saberes triturados em disciplinas.
Comunicam entre elas e com o mundo.
Aqui como lá, crianças da escola questionam-se e interpelam a comunidade. São interpeladas pela comunidade. Um terreno baldio junto ao muro da escola, fonte de preocupação desde há muito, serve de pretexto. Desenha-se um projeto de horta comunitária, o que implica o tratamento da terra. Comunidade e escola envolvem o poder local. A horta foi inaugurada em outubro.
Entre a comunidade escolar que toma a palavra e procura emancipar-se e a comunidade em redor da escola que se ocupa do espaço público e se emancipa criou-se um elo de ligação.
A comunidade presta um serviço, com a comunidade, para a comunidade. Leva tempo, mas ela aprende a defender-se de hierarquias arrogantes e paternalistas, longe de tudo e todos, instaladas nas suas torres de marfim, sujeitando uns, excluindo outros.
Interpretam-nas enquanto se emancipam. Bom serviço.

Pascal Paulus


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo