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O capital fixo de Portugal

Diz-nos o mais elementar manual de ciências sociais que o capital é qualquer bem – fixo, circulante, técnico ou financeiro – que, por meios variados e conjugado com outros fatores, é suscetível de produzir novos bens e de aumentar a riqueza.

Se considerarmos como capital fixo os bens naturais (terra, mar, floresta e clima), Portugal é um país privilegiado, que não teve de enfrentar o mar, como a Holanda, as montanhas, como a Suíça, ou o deserto, como o Sudão.
No entanto, qual mal-agradecido expiando um pecado, há séculos que se confronta com a ‘culpa’ do abandono do interior do território, paradoxalmente despovoado enquanto carecido de meios humanos de produção e riqueza. Em meados de abril, em Bragança, a RTP, para fechar um inquérito sobre o pensamento dos portugueses a respeito do país, reuniu várias figuras públicas para um debate centrado na “interioridade”. No geral, o que os portugueses pensavam da nação era o que viam e sentiam nas suas vidas, neste momento afetadas por uma crise sem prazo à vista, que só não atingia verdadeiramente os ricos e forçava os pobres e os desempregados a saírem da pátria. Donde, se lhes ocorresse, teriam certamente repetido o que escreveu Almeida Garrett, em «Viagens na minha terra», há mais de século e meio:
“E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”
Era uma altura em que Portugal, já sem o recurso do ouro do Brasil independente, que lhe permitira adquirir na Europa o que não produzia no país, via engrossar as fileiras da emigração, aos milhares, deixando as aldeias e os campos cada vez mais desprovidos de braços para produzir e de ânimos para esperar por melhores tempos.
Mas já não era novidade. Trezentos anos atrás, Garcia de Resende lamentava que o país, absorvido pelos Descobrimentos, tivesse de compensar a saída de uma boa parte da população com cativos de África. Foi uma história de despovoamento que se repetiu continuadamente, hoje contrabalançado com as variáveis de outros expatriados de várias origens, como que num processo de endosmose contra a exosmose, ameaçando o território português de se tornar, como diria Alfredo Margarido, num país de minorias. Quando foi credível uma estatística, só de 1855 até 1973, segundo Joel Serrão, emigraram legalmente 3.174.750 portugueses metropolitanos, sabendo-se que a emigração real foi sempre superior à legal.
Para obstar aos que fugiam por não terem terra própria e que entendiam como pátria o local onde nasceram e gostariam de viver e morrer, chegara a esboçar-se, em 1869, um movimento de desamortização dos baldios e logradouros comuns. Mas, como ainda não respondia aos condicionalismos de uma estrutura fundiária classista e secular, a Primeira República intentou, em 1926, um projeto de colonização interna, com vista a fixar à terra a população de regiões pouco povoadas. Todavia, a instabilidade das políticas governamentais acabou por levar a que só em 1936 o Estado Novo firmasse, através de uma Junta de Colonização Interna, um mais ousado plano de fixação das populações rurais, criando “colónias agrícolas” no Norte e Centro do país – Ponte de Lima, Paredes de Coura, Arcos de Valdevez, Monção, Montalegre, Leiria, Montijo e Cantanhede –, cujo modelo, 20 anos depois, haveria de inspirar a criação de colonatos em Angola e Moçambique.
Por erros e cálculos que não cabe aqui analisar, aqueles projetos estão fora de uma história de sucessos duradouros, mas poderão servir para os novos governantes assumirem que, para salvar o capital fixo, já não será suficiente pensar, como aventou em Bragança o professor Adriano Moreira, numa lei como a das Sesmarias. Na verdade, hoje também não basta refundir o direito à posse da terra, argumentando, como Belmiro de Azevedo, ironicamente ou não, há alguns anos, na sua terra natal, perante um ministro: “A terra a quem a trabalha!”.
O problema tornou-se mais complexo após a instituição, em 1986, da CEE, a partir da qual, em favor de um competitivo mercado expansionista e do pleno consumo, todas as reformas agrárias e capitais fixos se submeteram, a troco imediato de sonhos miríficos e de subsídios de compensação, à seleção das mais rentáveis capacidades produtivas dos países-membros, originando que nos países pouco desenvolvidos ficassem as pequenas propriedades incultas, por falta de braços para as trabalhar.
Mas como o caso de Portugal não é único, mesmo na Europa, o que falta ver agora é se o capital fixo, reificados os fatores do maior lucro e do menor custo, em nome de novos modelo de vida e paradigmas de felicidade, não será confrontado com um desafio civilizacional. 

Leonel Cosme


  
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Edição:

Edição N.º 197, série II
Verão 2012

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