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A criança abandonada

Crianças, tarefa difícil de analisar. Pensamos saber tudo sobre elas e tratamo-las como melhor nos parece, ou reparamos nada saber e mimamos um ser que toma vantagem da dor dos pais, que vivem arrependidos desse nada saber. Arrependimento refletido nas suas caras e nos presentes oferecidos, na simpatia usada para matar a dor da falta de apreço pelo seu comportamento. Quando nada se sabe sobre criar filhos, a dor bate nos progenitores.
Desconhecer como tomar conta de uma criança é uma maneira de a abandonar. No lado oposto, há os que pensam tudo saber, mandando nela como se fosse escrava: punem, corrigem, batem e enviam-na para a solidão do quarto. Em sociedades patriarcais, como a nossa, é o elemento masculino quem dá menos carinho, arremete sobre os filhos e pede-lhes contas de manhã à noite.
Sem nada, devem inventar. Tenho-o observado no meu trabalho de campo, em várias aldeias e diferentes continentes.
Se o dia se passou sem se fazer nada de produtivo aos olhos dos pais, ou se a produtividade desejada vira jogo de berlindes, da macaca ou exploração do mato com os camaradas.
Em outros ensaios escrevo sobre a diferença entre menino e menina. A segunda pessoa tem o seu tempo todo ocupado. As sociedades patriarcais usam e abusam das senhoras desde novas: nos trabalhos na cozinha, no coser e remendar das roupas, na permanência junto da mãe para saberem como é que a vida deve recorrer dentro do lar.
Bem sabemos que o estudo é obrigatório, e obter uma boa avaliação recompensa os esforços que um dia podem levar à Universidade e às profissões doutorais. Mas isto acontece a uma pequena fatia, especialmente em tempos de crise como a que vivemos atualmente. Os rapazes são enviados a trabalhar em qualquer atividade que dê lucro, moedas que devem ficar sempre em casa para um fundo familiar que pode ajudar quando o dinheiro é escasso. A criança é abandonada às suas habilidades para dar lucro e prestar contas ao patrão, da obra e de casa.
Outra forma de abandono observado em trabalho de campo é o descarinho que desencaminha as crianças da afetividade. A criança-bebé é o amor dos amores dos progenitores, que observam como cresce e as gracinhas que faz. Hoje em dia, no entanto, é raro ver esse carinho, porque pais e mães trabalham e os mais novos ou ficam com alguém da família, normalmente uma avó, ou vão para o infantário (hoje em dia, também para o préinfantário), tanta é a necessidade dos raros euros que os bolsos podem suportar, transitar ou guardar.
Abandono é, também, não saber o abecedário do corpo, da sua fisiologia e de como muda num curto espaço de tempo. Entre rapazes, a mudança fisiológica é aprendida dos mais atrevidos do grupo, que começam nos denominados sonhos molhados e continuam por uma masturbação coletiva, até encontrarem, já púberes, a pessoa dos seus desejos, com quem fazem amor. Nos dias de hoje, todo o namoro começa numa relação sexual íntima, que pode ou não continuar ao longo do tempo.
O maior dos abandonos é não tratar as crianças de forma carinhosa, com mimos e carícias, divertimentos e jogos entre todos os parentes que moram debaixo do mesmo teto; não se fomenta a leitura conjunta nem se comentam os livros durante as refeições.
Finalmente, a criança mais abandonada é a que é colocada em internatos, casas de amas, colégios de sacerdotes, apesar do que hoje todos sabemos e os pais querem ignorar, pela vergonha que causa e que deve ficar apenas dentro da família.
Uma criança abandonada é a pior das felonias do adulto. Especialmente se é abandonada em locais onde é abusada.
Começamos a saber como adultos consagrados usam os seus estudantes, púberes ou não, para satisfazerem a sua libido.
A criança abandonada acaba por ser um adulto sem carinho: não teve de onde aprender!

Raúl Iturra


  
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Edição:

Edição N.º 197, série II
Verão 2012

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