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Quatro perguntas a Madalena Marçal Grilo

Como analisa este o relatório da UNICEF sobre a situação mundial da infância?

Ao dedicar o seu relatório anual sobre a situação mundial da infância à crescente urbanização da população mundial, a Unicef pretende chamar a atenção para as consequências que esta realidade está a ter para centenas de milhões de crianças que, em cidades de pequena ou grande dimensão, vivem em condições precárias, excluídas do acesso a bens e serviços básicos e expostas a toda uma série de perigos, que vão desde a violência e exploração a doenças e até à morte. Atualmente, mais de 50% da população mundial vive em zonas urbanas, e as crianças nascidas nas cidades já representam 60% do aumento da população urbana. O aumento da urbanização é inevitável e, dentro de poucos anos, a maioria das crianças irá crescer não nos meios rurais, mas em cidades. A situação destas crianças, e as suas necessidades, frequentemente representadas por dados que escondem profundas disparidades entre ricos e pobres, não pode ser ignorada. Excluir as crianças das cidades que vivem em bairros degradados ou clandestinos rouba-lhes a possibilidade de desenvolverem todo o seu potencial e priva a sociedade dos benefícios económicos e sociais de uma população instruída e saudável.

O relatório refere o aumento das disparidades entre crianças. Quais são os principais problemas?

As cidades proporcionam a muitas crianças as vantagens de equipamentos urbanos como escolas, serviços de saúde e espaços recreativos. No entanto, por todo o mundo, as mesmas cidades são também o pano de fundo de algumas das maiores disparidades em termos de saúde, educação e oportunidades. As crianças dos bairros degradados podem viver próximo dos serviços de que necessitam para sobreviver e se desenvolverem e, no entanto, serem excluídas dos mesmos. É frequente verificarem-se elevadas taxas de mortalidade em locais onde se concentra a pobreza extrema e a ausência de serviços adequados, como acontece em bairros degradados. O sobrepovoamento e a falta de condições de salubridade são terreno fértil para o alastramento de doenças, sobretudo porque os níveis de imunização são muito baixos. Em muitos casos, as taxas de subnutrição infantil ou de mortalidade de menores de cinco anos nos meios urbanos pobres estão a par das que se verificam nas zonas rurais mais desfavorecidas.
Ao nível global, em termos de subnutrição infantil, as disparidades entre zonas rurais e urbanas diminuíram porque a situação piorou nas zonas urbanas. Por outro lado, a obesidade que afeta crianças nos países ricos está a crescer nos países de baixo e médio rendimento. As infraestruturas e os serviços não estão a acompanhar o crescimento urbano em muitas regiões e as necessidades básicas das crianças não estão a ser satisfeitas. É frequente as famílias que vivem na pobreza terem um acesso precário ou pagarem mais por serviços de baixa qualidade. A água, por exemplo, pode custar 50 vezes mais em bairros pobres, onde os moradores têm de a comprar a privados, do que em bairros mais ricos, onde as residências estão diretamente ligadas à rede de abastecimento de água. O número de pessoas que não dispõem de instalações sanitárias aumentou perto de 30 milhões entre 1990 e 2008. As privações que as crianças enfrentam nas comunidades urbanas pobres são muitas vezes ocultadas por médias estatísticas que agregam todos os habitantes urbanos – tanto ricos como pobres. Quando médias deste tipo são utilizadas para influenciar as políticas urbanas e a alocação de recursos, as necessidades dos mais pobres podem ser subestimadas.

Que soluções podem ser postas em prática?

A UNICEF insiste na importância de uma abordagem centrada na equidade, o que implica dar prioridade às crianças mais desfavorecidas onde quer que vivam. E apela aos governos para que coloquem as crianças no centro do planeamento urbano e para que melhorem e tornem os serviços extensivos a todos. Para começar, são precisos dados mais específicos e rigorosos para ajudar a identificar as disparidades existentes entre as crianças que vivem nos meios urbanos e o modo de superá-las.
A escassez de dados prova a negligência a que estas questões têm sido votadas. Embora os governos possam fazer mais, a todos os níveis, o envolvimento das comunidades é também decisivo para obter bons resultados.
O relatório apela a um maior reconhecimento da participação das comunidades no combate à pobreza urbana e apresenta exemplos de parcerias eficazes com populações urbanas carenciadas, incluindo com crianças e adolescentes. Estas parcerias produzem resultados tangíveis, como demonstram alguns exemplos apresentados no relatório, tais como a melhoria das infraestruturas públicas no Rio de Janeiro e em São Paulo; o aumento das taxas de alfabetização em Cotacachi, no Equador; e o reforço da preparação para catástrofes em Manila, nas Filipinas. Em Nairobi, no Quénia, vários adolescentes fizeram um levantamento da comunidade do bairro degradado onde vivem com o objetivo de informarem os técnicos de planeamento urbano. O programa pioneiro Oportunidades, lançado pelo governo do México para atender às necessidades das populações rurais, e posteriormente alargado aos meios urbanos, é um dos bons exemplos de políticas para a redução da pobreza e desigualdade apontados pela UNICEF. O programa prevê a utilização de transferências em dinheiro para as famílias mais pobres, na condição de que os seus filhos frequentem a escola e sejam regularmente vistos por um médico. Com mais de quatro milhões de adesões, a experiência, entretanto replicada por outros governos, foi considerada um sucesso que se traduziu pelo aumento significativo do número de crianças que progrediu nos seus estudos secundários (20% para as raparigas e 10% para os rapazes) e pela diminuição de doenças nas crianças mais pequenas. Em última análise, a UNICEF sublinha que os problemas das crianças não serão resolvidos com abordagens tradicionais. É necessária uma nova abordagem com base na igualdade e enfoque nos mais marginalizados e vulneráveis. Para tal, há que compreender melhor a escala e a natureza da pobreza e de exclusão urbanas que afetam as crianças; identificar e remover obstáculos à inclusão; dar prioridade às crianças em matéria de planeamento, infraestruturas e serviços que respondam às suas necessidades; promover a participação das populações urbanas mais pobres e trabalhar em conjunto ao nível comunitário, municipal, nacional e internacional.

É possível traçar um cenário atual do nosso país nesta matéria?

Ainda que muitos dos problemas identificados no relatório não se coloquem no nosso país, não podemos dizer que a pobreza urbana tenha desaparecido. Os bairros de barracas praticamente desapareceram em Portugal, mas entre as muitas pessoas que foram realojadas e as que habitam hoje em alguns bairros sociais, persistem muitos problemas que não estão resolvidos. A falta de condições de habitabilidade, o número elevado de pessoas por habitação, a exploração de crianças, os abusos sexuais, muitas vezes propiciados pelas condições de habitação, são motivo de preocupação e não podem ser ignorados. Num período de crise como o que se vive atualmente, em que o desemprego e os cortes sociais estão a refletir-se na vida de muitas crianças, é fundamental que as medidas e as políticas ao nível nacional e local tenham em conta as necessidades das crianças mais vulneráveis. 


  
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Edição:

Edição N.º 197, série II
Verão 2012

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