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O currículo e as formas de o esconjurar

1. Quando em 1994 se legislou que os alunos do Ensino Secundário seriam sujeitos a exames nacionais no 12º ano, um grande número de professores mudou de imediato a sua atitude pedagógica e adotou de novo estratégias antigas em que, por formação, era mais versado; esses métodos pareciam mais eficazes em termos imediatos. Curiosamente, esse ano de 1993/94 foi também o da generalização da Área Escola, que tinha como objetivo a prática de trabalho em grupo por alunos (e por professores), a multi, a inter e, quiçá, a transdisciplinaridade. Os professores, nesses anos de 94 e 95, viram-se a braços com duas forças que se opunham: uma que apelava ao espírito criativo, à inovação e a um trabalho de risco; outra que assegurava um trabalho sem perigo, pré-conhecido e do agrado do empregador. Tratava-se, afinal, de diferentes moldes de manipular o currículo e das formas de o operacionalizar e avaliar. Por isso, a formação dos professores é importante – eles têm de ser uma voz crítica, interventiva, nas suas associações, sindicais ou outras, mas também nos órgãos representativos nas escolas; a segurança dos professores em relação aos currículos que devem desenvolver de acordo com os respetivos projetos curriculares de turma ou de agrupamento só pode advir da sua formação e do seu trabalho em grupo – aí se geram certezas, não no medo assumido individualmente por causa dos resultados dos alunos num exame; enquanto as escolas não “adotarem” coletivamente a gestão do currículo, não definirem em conjunto quais as melhores estratégias a seguir para uma situação, para uma turma, enquanto não assumirem que os resultados de uma turma em exame são, a montante, da responsabilidade da escola e não de um só professor (porque toda a escola esteve dentro do trabalho desse professor), não teremos uma vida estável e saudável do currículo.

2. Houve um tempo, depois de 1974, em que se começou a constar que os jovens portugueses não sabiam ler, nem escrever, nem contar. Culpa da Escola. Chegavam ao Natal a saber as vogais, às vezes o p e o b, outras nem isso; andavam quase até ao fim da 1ª classe sem saber nada.
Culpa dos professores. Foi-se a ver e – felizmente – só tinham de aprender a ler no fim do 2º ano.
Quando falamos na necessidade de crianças, jovens, adultos – enfim, os cidadãos – saberem ler, escrever e contar, estamos todos de acordo; não estamos é todos a dizer a mesma coisa. Alguns falam de uma leitura mecânica que se limita a adivinhar uma correspondência rápida e automática entre o grafema e o fonema; de caligrafias muito hirtas medidas ao milímetro; de tabuadas cantadas de cor, sem grandes raciocínios, ou de operações muito bem mecanizadas, com provas e tudo, sem nunca se compreender o que se está a fazer, realmente. E uns podem fazê-lo usando estratégias muito ditatoriais e outros com estratagemas divertidos.
Mas há ainda pelo menos outro grande grupo que entende a leitura como prazer e como uma abrangente compreensão do mundo, tendo mais passos de aprendizagem e demorando mais tempo nesse processo – que faz bons diseurs, capazes de lerem os versos seguintes quando ainda estão a recitar o anterior; também a preocupação com uma caligrafia legível dá lugar a um discurso organizado e autónomo incrementando a criatividade, a invenção e a ousadia. E em Matemática, perceber que 2+2+2 é o mesmo que 3x2 recria desde cedo a elasticidade a que obrigamos o nosso cérebro para nos ajudar mais tarde a jogar voleibol, monopólio, playstation, a arranjar um emprego criativo… Enfim, a fazer avançar o mundo em que vivemos.

3. As disciplinas do leque das expressões artísticas, que desde abril de 74 começaram a emergir timidamente nos currículos, têm sofrido nos últimos anos vários ataques no ensino regular, mas:
- por um lado, o contacto com as artes, ou seja, a expressão artística, é um direito de todos os cidadãos; logo, todas as artes deveriam fazer parte do currículo, do 1º ao 12º ano, podendo o aluno optar no Secundário de acordo com a sua preferência. Mas sem nunca haver o perigo de uma abordagem incorreta por parte do formador – não se trata de formar artistas, mas de proporcionar aos cidadãos a abordagem de todas as expressões e uma maior convivência com algumas delas;
- por outro lado, educação artística enquanto cultura geral (nunca com o virtuosismo de uma escola artística) tendo em conta a fruição de cada um e a necessidade de formação de públicos, mesmo entre as camadas mais jovens.

4. Agora tudo muda para muito pior. Porque 38 anos de democracia são já um longo caminho de aprendizagem que os professores percorreram. Descobriram ateliês com novas estratégias em vez de ou a par de, segundo situações devidamente analisadas, apoios experimentados e testados. Sabem que não é sempre com mais do mesmo que se aprende, mas com novos trilhos.
Os professores descobriram os verdadeiros caminhos da inovação: aqueles que não se fazem por decreto, mas sim a partir pedra no quotidiano da escola, com os colegas, com os alunos, com os funcionários, com os técnicos, com os pais, se estiverem presentes.
Com esta ideia tão simples e tão ultrapassada de que basta mais uma hora de Matemática ou de Português para solucionar o problema do insucesso escolar, voltamos a andar para trás. Perdemos milhões de horas em que se descobriu que as disciplinas fundamentais estão em toda a parte (como Deus!), de tal maneira os saberes se entrecruzam e o mundo atual assenta nessa panóplia criativa que os entretela por dentro.
Parece ser cada vez mais verdade que seria tanto melhor que as escolas trabalhassem organizadas em projetos, com grupos de alunos e de professores (e não em turmas organizadas em disciplinas estanques) seguindo um leque de conteúdos a abordar ao longo de um ciclo. Mas o século XXI, afinal, nunca mais chega… 

José Rafael Tormenta


  
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Edição:

Edição N.º 197, série II
Verão 2012

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