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Cinco verdades

1. Ninguém quer saber, mas quando aparece na televisão já toda a gente tem opiniões para dar... É como lhe digo, esta miúda sempre nos deu imensos problemas. Está aqui desde o 5º ano. Era agressiva, violenta com professores e até com os funcionários, e com uma linguagem que era inadmissível. E depois que se juntou àquele grupo do Ramiro ficou ainda pior. Mas esta agressão ultrapassou tudo o que poderíamos imaginar, sobretudo a crueldade com que foi exposta. Não, não sei o que se lhe poderá fazer…

2. Conheci muito bem a Vanessa...
Foi minha aluna desde o primeiro ano. Parecia uma gatinha assustada e pronta a arranhar: franzina, negligenciada, uns grandes olhos pedindo afecto, mas de sobrolho sempre franzido, sempre à defesa. Não era aquilo que se costuma chamar uma criança dócil, mas ouvia-nos e até se empenhava nas tarefas com algum entusiasmo. Ia-se muito abaixo com qualquer crítica e rejubilava com qualquer elogio. Não tinham com ela os cuidados necessários a uma criança da sua idade. Só depois soube da história dela, da fuga da mãe, do pai alcoólico e desequilibrado. De como cuidava da avó. A pobre senhora aparecia cá às vezes, mas também era tão doente… A Vanessa é que fazia tudo lá em casa, e até a tratava. Era muito pequena e precisava tanto de apoio…

3. Os senhores têm razão... O que a minha neta fez não tem desculpa, e eu fico cheia de vergonha sempre que ouço falar disto. Mas gostava que a tivessem visto quando tinha só sete anos e a mãe desapareceu, deixando-a só com o meu filho e comigo. Ela era muito pequena e estava muito revoltada. Depois, o meu filho até não é mau homem, mas tem aquele problema, dizem que é esquizo qualquer coisa, e com o álcool é um inferno. No início batia na Vanessa, mas depois ela fugia-lhe sempre e ele partia tudo… Até estivemos uns meses sem televisão. Às vezes não tínhamos que comer. Ele levava o dinheiro que havia cá em casa, eu estava de cama, sem me poder mexer, e a Vanessa sempre arranjava maneira de trazer alguma coisa: fazia trabalhos para as vizinhas, lavava roupas ou outras coisas. Desde muito pequena, aqui em casa, ela fazia tudo e até tratava de mim; nos momentos piores, abraçava-me e dizia para não chorar, que um dia havia de dar uma volta à vida. Como é que eu podia ralhar-lhe quando da escola diziam que ela não estudava? Agora que era brava, era – nenhum rapaz se metia com ela, e mesmo o meu filho começou a ter-lhe respeito, mas estava tão tresloucado a maior parte do tempo… Em pequena, precisava tanto de ajuda e eu não podia… Ainda vieram aqui umas senhoras, acho que da CP qualquer coisa ou da Segurança Social. Tentaram que o meu filho fosse internado para se tratar, mas não se arranjou nada. Precisámos tanto de ajuda e nunca conseguimos… E agora aparece tanta gente a falar. O que se pode fazer?...

4.Eu sabia que essa miúda tinha alguns problemas... Mas o que ela fez à minha sobrinha não tem qualquer desculpa.
Aquilo foi comportamento de uma selvagem, de uma verdadeira psicopata. Uma degenerada. Não acredito que ela tenha qualquer tipo de sentimentos, nem por nada, nem por ninguém. A minha sobrinha é uma criança educada e nunca entraria numa provocação. É uma miúda frágil e não está habituada a estas violências, não pôde defender-se. Para mim, essa Vanessa devia ser presa já, não pode andar cá fora a pôr em perigo a vida de pessoas de bem. A sociedade tem obrigação de nos proteger. Se não, aonde é que isto vai parar?...

5.Já sei que me vão prender... E depois, o que é que isso me interessa? O Ramiro é que foi parvo, não tinha nada que pôr o filme no YouTube. Não foi isso o combinado. É verdade que a sonsa estava a pedi-las, sempre com aquele ar de não me toques, a dizer que fazia tudo direitinho e que os professores gostavam dela… Mas se calhar exagerei. Era para o filme… Agora quero lá saber… Até descanso a cabeça das cenas de lá de casa, o meu pai aos gritos, a partir tudo e a ameaçar bater-me… Só tenho pena da minha avó, gosto muito dela! E quem a vai tratar? Talvez agora eu consiga dormir uma noite sossegada...

Angelina Carvalho


  
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Edição:

Edição N.º 195, série II
Inverno 2011

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