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A propósito das TIC...

Presumir que um saber se esvazia de sentido escolar porque os jovens já dominam a sua apreensão utilitária e instrumental revela uma concepção das prioridades na Escola, mas, igualmente, uma falta de vontade de aprofundar o que está em jogo.

O argumento recentemente apresentado pelo ministro da Educação quanto ao fim das Tecnologias da Informação e Comunicação no 9º ano de escolaridade (“a maioria dos jovens já domina os computadores perfeitamente e é questionável que seja necessário ter uma disciplina de TIC”), para além de pecar pelos pressupostos que todas as frases redundantes encerram (mesmo que, ou sobretudo, por serem provenientes da boca de um ministro), faz, à boa maneira das redundâncias, a economia de se debruçar sobre aquilo que está por detrás do fenómeno. Se é verdade que muitos alunos lhe agradecerão (embora seja menos uma disciplina em que possam brilhar), se muitos pais afinarão até pelo diapasão de que a Escola é para as coisas sérias, continua por explicar uma coisa fundamental, isto é, saberes de uma actualidade incontornável – que alguns designam, aliás, a literacia do século XXI – não precisam passar pelo palco da instituição formal de ensino porque… os jovens os aprenderam fora da Escola.
Por que é que isto é assim e por que é que isto esvazia de seriedade muito do trabalho escolar (não o trabalho dos professores)? James Paul Gee sustenta uma argumentação que provavelmente nos ajuda a compreender o fenómeno e que é: uma aprendizagem que se queira aprofundada em qualquer área terá de deixar de ser um processo instruído para passar a ser um processo cultural, isto é, um processo que mergulha nas raízes mais profundas do indivíduo, nos espaços da sua convivialidade, no espaço dos seus mundos da vida [James Gee, Situated Language and Learning. A critique of traditional schooling, 2004].
Na verdade, aquilo que supostamente é abarcado pela designação TIC reporta-se a um mundo que é familiar aos jovens, provavelmente menos por influência dos adultos e mais por influência dos pares, o que sustenta até um outro ponto de vista, que a Escola institucionalmente rejeita e que é a possibilidade de se construírem aprendizagens no trabalho inter-pares.
Esta evidência não esvazia, porém, quer o trabalho dos adultos, quer o trabalho da Escola. Quando Gunther Kress se reporta às transformações nos modos e meios de comunicação para discutir a centralidade da linguagem ou, em extensa medida, a sua secundarização face a outros modos de comunicar, é ainda por relação a referentes culturais que nos situamos. Embora eles não sejam apenas efeitos de uma suposta tradição, são objecto de construção em permanência; a dissociação do mundo dos jovens daquele que a Escola apresenta não é uma falácia, é o resultado do fechamento a um mundo crescentemente de escolhas, onde a actividade consumista é acompanhada por uma actividade crescente de produção e participação [Gunther Kress, Multimodality. A social semiotic approach to contemporary communication, 2010].
O passivo fruidor de saber que a Escola cultiva contrasta, cada vez mais, com o utente interventivo e curioso, interessado em saber, que a frequenta. E é porque, provavelmente, este interesse se orienta hoje mais em favor do imediato, quantitativo e multifuncional, e em detrimento do preciso, do focalizado e do aprofundado, que o papel da Escola, enquanto espaço público de socialização dos jovens por excelência, permanece insubstituível.
O argumento do ministro é uma demissão, não do papel da Escola, mas do papel de uma Escola que é ou deveria ser hoje mais cultural e social e menos especializada na transmissão de um saber fragmentado – o que, aliás, ficou demonstrado com a criação de uma disciplina de TIC.
A disciplina das TIC, remetida à sua instrumentalidade, onde o professor tende sempre a confrontar-se com uma simetria de saberes, quando não mesmo a sua superação por parte dos seus alunos, não só confronta a Escola na sua génese organizacional, como tende a ignorar a dimensão transformativa que este acrónimo pode encerrar. Cito Castells quando recorda que “o que é historicamente específico ao novo sistema de comunicação, organizado pela integração electrónica de todos os meios de comunicação, do tipográfico ao sensorial, não é induzir à realidade virtual, mas construir a virtualidade real”. Não é algo tão inusitado quanto a parafernália tecnológica possa sugerir: “a realidade, como é vivida, sempre foi virtual porque é sempre percebida por intermédio de símbolos formadores da prática com um certo sentido que escapa à sua rigorosa definição semântica”. E, adianta o autor, “quando os críticos dos media electrónicos argumentam que o novo ambiente simbólico não representa a ‘realidade’, referem-se implicitamente a uma absurda ideia primitiva da experiência real ‘não-codificada’ que nunca existiu. Todas as realidades são comunicadas através de símbolos. E na comunicação humana interactiva, independentemente do meio, todos os símbolos são, de certa forma, deslocados em relação ao sentido semântico que lhes é atribuído. De certo modo, toda a realidade é percebida virtualmente” [Manuel Castells, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. A Sociedade em Rede, 2007]. A circunstância de presumir tão simplesmente que um saber se esvazia de sentido escolar porque os jovens já dominam, afinal, a sua apreensão utilitária e instrumental, é reveladora de uma concepção das prioridades na escola, mas igualmente de uma falta de vontade de aprofundar o que está em jogo absolutamente gritante. Até posso concordar que, enquanto disciplina, as TIC não façam grande falta; agora que, politicamente, se aprofunde ainda mais o virar de costas da Escola àqueles que, supostamente, são a razão da sua existência, parece revelador da sapiência que nos governa.

Henrique Vaz


  
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Edição:

Edição N.º 195, série II
Inverno 2011

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